Título: Mestre em Brasil
Autor: Luiz Inácio Lula da Silva
Fonte: Valor Econômico, 29/11/2004, Opinião, p. A-10

A morte não representa a derradeira etapa na trajetória de um ser humano quando ele deixa idéias que podem inspirar um povo e mover uma nação. Esse, creio, é o caso do companheiro, mestre e amigo Celso Furtado. Não há homenagem maior a um intelectual do que reafirmar a atualidade de sua obra e o exemplo de sua postura pública. Furtado gostava de apresentar-se como um servidor público e isso traduz bem o seu caráter, a sua visão de mundo e as suas escolhas - bem como os riscos, diante dos quais jamais recuou. Caso raro de sintonia entre a vida e a obra, sua integridade era incompatível com vetos políticos ou intelectuais a uma convicção histórica: a possibilidade de construir um Brasil próspero, justo e soberano. Dito por muitos, esse triplo adjetivo ganha a opacidade das palavras órfãs de sentido e história. Aí reside a diferença de Furtado. Autonomia decisória para ele era um requisito indispensável à ampliação do bem estar e à elevação humana de uma sociedade. Era, por assim dizer, um instrumento divisor na história das nações. Essa marca forte do seu pensamento é que o diferencia - ontem, hoje e sempre - da ligeireza contábil de algumas escolas econômicas, cujos expoentes apressam-se em subestimar a atualidade de idéias distribuídas em 30 livros traduzidos em 15 idiomas. Celso Furtado não se subordinava a modelos prontos. Sua vasta cultura, seu conhecimento histórico, seu olhar profundo e sertanejo, voltavam-se sempre, e em primeiro lugar, para a realidade do país e a vida do seu povo. Dessa imersão intelectual e humana, decantava as singularidades nacionais, localizava os gargalos seculares, as armadilhas da desigualdade. Extraía daí com serenidade e rigor as ferramentas e políticas para superá-las. Foi assim que se projetou sobre a nação, ainda em vida, como símbolo de um Brasil que não renuncia ao desenvolvimento e não abdica de um espaço no cenário mundial. Quando ensina que o subdesenvolvimento não é uma etapa necessária e incontornável do desenvolvimento, mas uma engrenagem regressiva, assentada na aliança perversa entre estruturas injustas e assimetrias internacionais, ele resume cinco séculos de história e projeta uma agenda para o futuro. Mantidas essas relações, dizia o mestre nascido em Pombal, na Paraíba, em 1920, o acelerador da riqueza aciona o freio da distribuição e aprofunda a desigualdade, perpetuando a injustiça. Desarmar essa engrenagem é a própria agenda do desenvolvimento. Requer paciência, sabedoria e responsabilidade. Em uma época de transição como a nossa, uma das prioridades que apontava era a urgente ampliação da margem de autonomia do país. Conversamos algumas vezes sobre isso, de forma sempre franca, gentil e serena, como era próprio do seu estilo. Posso dizer, portanto, que nossa política bem-sucedida de comércio exterior já permitiu ao Brasil romper um torniquete gigantesco trazido dos anos 90, quando o país especializou-se em consumir bens e serviços financiados com dinheiro externo, acumulando assim um déficit em contas correntes da ordem de US$ 200 bilhões em oito anos.

Na ótica de Furtado, uma nação não é um milagre contábil, mas a soma de criatividade política e coordenação estratégica

Em 2003 já tivemos uma reversão parcial nessa espiral descendente. Este ano, o saldo em contas correntes será substancialmente maior, acumulando resultado positivo superior a US$ 10 bilhões. O fôlego externo incentiva a expansão de cadeias produtivas, viabiliza as parcerias público-privadas em infra-estrutura, gera emprego e renda, e reforça o peso internacional da economia para, simultaneamente, ampliar a cooperação e o comércio justo entre os povos. Em resumo, estamos avançando na desmontagem da engrenagem perversa do subdesenvolvimento. Na ótica de Celso Furtado, uma nação não é um milagre contábil, mas uma soma intencional de criatividade política para reverter circunstâncias, e coordenação estratégica para não desperdiçar recursos e oportunidades. E foi por acreditar que uma nação não é outra coisa senão a prevalência de consensos políticos capazes de superar a rigidez econômica, que ele rejeitou a lógica estreita dos que viam o Brasil como uma vocação essencialmente agrícola. A industrialização brasileira teve em Furtado um planejador ousado e atuante, que mostrou na prática, durante os governos de Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart, que vantagens comparativas não são apenas um legado da natureza, mas uma construção histórica de cada povo. Essa aposta na racionalidade do planejamento - e na força dos consensos democráticos - levou-o a desafiar a rigidez das desigualdades regionais, especialmente as do Nordeste, para formular em 1959, aos 38 anos de idade, o projeto do qual surgiria a Sudene, recriada em nosso governo. Poucos sabem, mas devemos a esse olhar visionário também a criação do Grupo de Estudo do São Francisco, que deu origem ao exuberante pólo irrigado de Petrolina e Juazeiro. Agora, meu governo vai estender o sonho de Furtado para os sertões do semi-árido mais distante. A obra de revitalização do São Francisco, que iniciaremos em 2005, levará água para matar a sede do Nordeste setentrional e irrigará 47 mil hectares de terras férteis, criando milhares de empregos diretos. Não vamos prejudicar o velho Chico, mas investir em sua regeneração. Não vamos tirar água de quem já tem, mas estender a correnteza solidária desse rio republicano, que une o país úmido ao seco, para beneficiar milhões de vidas ressequidas de pão e cidadania. Serão dois canais, e o maior deles, com cerca de 400 quilômetros, cortará o sertão com o nome de "Celso Furtado", simbolizando o fio de continuidade entre os ideais de duas gerações. Essa mesma perspectiva inspirou-nos a lançar durante a XI Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento, a Unctad, realizada em junho, em São Paulo - e então dirigida pelo grande brasileiro Rubens Ricupero - o projeto de construção do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento. Cada ciclo histórico tem seu centro de formulação intelectual de referência estratégica. Nosso objetivo é criar um pólo de reflexão multilateral envolvendo intelectuais e governos de diferentes países, para aprofundar idéias e formular projetos inovadores de combate à fome, à pobreza e aos gargalos do desenvolvimento. De novo, não se trata de uma homenagem póstuma, porque está em curso há meses e recebeu o apoio encorajador do próprio Celso Furtado. Trata-se, sim, de reafirmar o compromisso com uma obra de indiscutível atualidade. Agora, mais que nunca, somos herdeiros e responsáveis pela retomada de uma construção interrompida, cujo nome é Brasil, e cujo mestre inspirador chama-se Celso Monteiro Furtado.