Título: O governo resiste ao populismo cambial
Autor: Sérgio Werlang
Fonte: Valor Econômico, 29/11/2004, Opinião, p. A-11

Neste ano, o governo tem agido energicamente para diminuir a dívida cambial brasileira. A medida mais importante foi a redução da dívida interna em dólares. Desde janeiro houve uma queda de US$ 24 bilhões. Quando o estoque de dívida cambial cai, ela fica mais escassa. Portanto, as pessoas que ainda querem aplicar recursos em dólares têm que aceitar uma remuneração menor. Dessa forma, ocorreu um efeito colateral importante: a taxa de juros em dólares no Brasil reduziu-se muito. A taxa de juros por um período de dois anos caiu de 4,10% ao ano para 3,30% ao ano. É interessante observar que a taxa de juros em dólares interna está mais baixa que a libor para aplicações até dois anos! Observe que a libor é uma taxa interbancária para bancos de primeira linha no exterior. Assim, hoje é possível para uma boa empresa brasileira captar recursos no mercado interno em dólares com um custo muito mais baixo que no exterior, já que para captar no exterior mesmo empresas brasileiras muito boas pagam acima da libor. Este fenômeno teve como conseqüência uma grande diminuição do apetite das empresas brasileiras por títulos e empréstimos no exterior, uma vez que é mais barato tomar recursos no Brasil que lá fora. A dívida externa privada de médio e longo prazo teve queda de US$ 6 bilhões desde o início do ano (era de US$ 68 bilhões). Por sua vez, a dívida pública externa reduziu-se em US$ 6 bilhões, e as reservas internacionais, excluídos os empréstimos do FMI, aumentaram. Além disso, essa redução das dívidas cambiais brasileiras acontece em meio a uma valorização da moeda nacional - o valor do dólar em reais caiu de uma média de R$ 2,97, no primeiro semestre deste ano, para uma média de R$ 2,80, no mês de novembro. E neste período, a inflação brasileira ficou acima de 6%, bem superior à inflação americana. A queda da taxa de câmbio tem como consequência uma menor pressão inflacionária no ano que vem, já que vários preços em reais dependem do valor do dólar. Só para exemplificar, depois do aumento de quinta-feira, o preço da gasolina exportada para o Golfo do México, retirado seu custo de transporte, já é menor que o preço interno, e o preço do diesel importado está apenas um pouco abaixo. E isso após o barril de petróleo ter subido 45% este ano. Dessa maneira, é natural que o Banco Central sinta-se tentado a atingir a meta de inflação do ano que vem com uma ajuda extra da taxa de câmbio. Fazer isso seria uma espécie de populismo cambial - manter o dólar valorizado para controlar a inflação. Mas as recentes medidas anunciadas pelo diretor de Política Econômica do BC mostram que a análise do governo é muito mais cuidadosa. No dia 24, foi divulgado que o Tesouro iria adquirir US$ 3 bilhões para fazer face a pagamento de suas dívidas a vencer entre dezembro de 2004 e junho de 2005.

A política de compra de dólares é acertada, a despeito da grande diminuição da vulnerabilidade externa que ocorreu em 2004

A decisão foi muito apropriada. E a escolha do Tesouro como agente que efetuará as aquisições é excelente. Isso por que no Brasil, historicamente, a administração da política cambial ficou a cargo do Banco Central. Ao mesmo tempo, há necessidade de aquisição de dólares por conta dos desembolsos que o país tem a fazer. Assim, imagine que o BC entre comprando dólares à vista. Que interpretação o mercado daria para essa atitude? Ora, como o BC cuida da política cambial, depreende-se imediatamente que o nível no qual ele atuou é um "piso" para a taxa de câmbio. Porém, se a aquisição fosse feita apenas para honrar compromissos futuros, e não para controlar a taxa cambial, então o mercado teria entendido de maneira errada a atuação, alterando de maneira indesejável a formação do preço do dólar. Por outro lado, quando o Tesouro atua, como ele nunca foi o responsável pela execução da política cambial, o mercado entende apenas o sinal correto: há uma pressão compradora a mais por necessidade de pagamentos externos. Sem dúvida que tal ação terá efeito no mercado cambial, mas não da mesma maneira que a atuação do BC teria. Ou seja, quando o BC adquire dólares, envia um duplo sinal, que leva a uma volatilidade alta. Por outro lado, quando o Tesouro faz isso, entende-se a mensagem correta, evitando a alta volatilidade. A política de compra de dólares é acertada, a despeito da grande diminuição da vulnerabilidade externa que ocorreu em 2004. Isso por vários motivos. Primeiro, houve uma queda da dívida cambial interna, mas ela ainda é de US$ 30 bilhões. Segundo, as reservas internacionais sem os recursos do FMI são de cerca de US$ 24,5 bilhões, muito inferiores a de outros países emergentes. De acordo com cálculos feitos com modelos do FMI, o Brasil deveria ter reservas entre US$ 30 bilhões e US$ 35 bilhões. Terceiro, um indicador muito utilizado pelas agências classificadoras de risco é a dívida bruta externa dividida pelas receitas em moeda forte do país, isto é, as exportações e outras receitas da conta corrente. Este quociente reduziu-se muito em 2004. De 2,6 em dezembro de 2003, deve terminar o ano pouco abaixo de 2. Contudo, isso ainda não é suficiente para colocar o Brasil em linha com os países emergentes com riscos menores que os nossos. Em média, para os países emergentes que são grau de investimento (isto é, aqueles que as agências classificadoras de risco consideram seguros) esta razão é de 0,7. Em outras palavras, para que o Brasil possa estar em linha com as economias emergentes mais seguras, é preciso haver grande diminuição dessa relação. Ou seja, o quadro foi muito favorável para as contas externas do país, mas ainda há muito a percorrer. Adicionalmente, o Brasil está passando por uma conjuntura internacional extremamente benigna. Não só os juros internacionais estão muito baixos, como o preço das exportações brasileiras está muito elevado. Com efeito, o preço das commodities exportadas pelo país tem aumentado desde 2002, tendo atingido em setembro seu nível mais elevado desde 1999 (note que isso aconteceu a despeito de uma redução de mais de 50% do preço da soja). Em suma, há um "choque externo" muito positivo. O Brasil deve aproveitar a oportunidade para completar o ajuste externo. O governo mostrou que está atento a isso, ao rechaçar o populismo cambial.