Título: "O que separa PT e PSDB não é definitivo"
Autor: Ivana Moreira e Cristiano Romero
Fonte: Valor Econômico, 29/11/2004, especial, p. A-12

Vivendo um bom momento em sua gestão à frente do terceiro Estado mais rico do país, o governador de Minas Gerais, Aécio Neves, acredita que, depois das eleições de 2006, PSDB e PT, partidos que vêm polarizando as principais disputas eleitorais desde 1994, deverão caminhar politicamente juntos. Uma aliança futura, diz ele, será boa para o país porque amparada em pilares mais éticos e com maior convergência ideológica do que os acordos que os dois partidos tiveram que fazer para governar o país. Segundo o governador mineiro, que se diz amigo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e que com ele já conversou sobre a aproximação entre tucanos e petistas, é esse o legado que Lula gostaria de deixar ao país. "O que nos separa não é definitivo. O que nos torna mais distantes hoje são algumas divergências pontuais e talvez o próprio jogo do poder", afirmou Aécio, em entrevista concedida ao Valor no Palácio das Mangabeiras. Usufruindo de prestígio administrativo por ter zerado, em menos de dois anos de gestão, o déficit das contas públicas de Minas Gerais, o governador defende mudanças na Lei de Responsabilidade Fiscal que ajudou, como deputado, a aprovar no Congresso. São mudanças que, segundo ele, não ferem o rigor da lei, mas que ajudariam os Estados a retomar a capacidade de investimento. A exemplo do prefeito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel, do PT, Aécio defende a "despaulistização" do PSDB, do PT e do governo federal e a criação de um novo pacto federativo. Valor: O prefeito Fernando Pimentel disse que o que separa hoje o PT do PSDB é apenas o projeto de poder. O sr. concorda? Aécio Neves: Temos origens comuns e poderíamos estar pensando na construção de um projeto de país, onde PSDB e PT seriam a base. É um sonho que ainda não abandonei. Não acho isso possível no horizonte próximo, mas é uma construção que virá, com alguma naturalidade, quando alguns enfrentamentos locais e pessoais forem superados. O que nos separa não é definitivo. Hoje, o que nos torna mais distantes são algumas divergências pontuais e talvez o próprio jogo do poder. As experiências que tivemos no governo e a que o PT está tendo agora nos levarão no futuro a construir, não um só partido porque as bases são distintas, mas um grande projeto de país, onde as alianças sejam feitas dentro de limites éticos mais aceitáveis, de uma proximidade de pensamento e de um projeto de centro-esquerda, social-democrata, que seria muito positivo para o país. Valor: O sr. vê no presidente Lula interesse nessa aproximação? Aécio: Ouvi dele, de forma muito firme, que gostaria que seu legado fosse uma construção política mais homogênea do ponto de vista do pensamento e do comportamento. Valor: No início do ano, após o caso Waldomiro Diniz, Lula tentou uma aproximação com o PSDB. Por que ela não foi possível? Aécio: Talvez, o governo tenha vivido no período mais recente uma certa crise de auto-suficiência. Superados os momentos mais graves daquela crise, o governo achou que governaria sozinho, o que já não acha hoje. Nada mais pedagógico do que o exercício do poder. Com a experiência de governo, com certeza o PT será um partido melhor lá na frente, como também aprendemos. O PSDB caminha para ser o representante de um projeto político com muito mais unidade do que tivemos lá atrás. O PT tende a isso também e, quem sabe, no futuro podemos retomar essas conversas. Valor: Quando exatamente? Aécio: Em 2006, as coisas caminham para uma polarização, um pouco já inspirada pelos resultados eleitorais (de 2004). Sempre achei que seria um projeto pós-2006. Vai depender muito da forma como a eleição termine. Não falo que dependerá da eleição do presidente Lula ou daquele que vier a disputar com ele, mas das pontes que conseguirmos construir daqui até lá. Não sou um dinamitador, mas um construtor de pontes. É dessa forma, inclusive, que pretendo ter proximamente uma conversa com o presidente, para ajudá-lo na construção da agenda de 2005. Valor: Qual o interesse do sr. em ter uma agenda comum com o PT? Aécio: 2006 não pode vir antes de 2005. Essa é uma preocupação que todos devemos ter porque isso (discutir a sucessão de Lula agora) seria extremamente nefasto e prejudicial ao país. No Brasil, cometemos sempre o equívoco de avaliar o futuro com base no momento. Interessa a nós, governadores do PSDB, que tenhamos um 2005 com tranqüilidade e crescimento econômico, para que possamos usufruir dos resultados do esforço que fizemos nos primeiros dois anos, que foram muito difíceis. Tudo o que não precisamos agora é da radicalização do processo político. Valor: Pimentel, que ganhou a eleição no primeiro turno, é uma liderança emergente no PT que defende a "despaulistização" do partido e do governo. O sr. defende o mesmo, no que diz respeito ao PSDB? Aécio: Acho muito positivo que o prefeito Pimentel esteja buscando, dentro do PT, seu espaço. Mas, do ponto de vista de Minas, o PT ainda é um partido frágil. É o quinto em número de prefeituras, o sexto em número de vereadores, um partido ainda sem a possibilidade de um grande projeto individual. A vitória do prefeito aconteceu muito mais por seus méritos do que por uma questão partidária. Mas, é importante para o Brasil que haja uma desconcentração das decisões, seja dentro do PT, do PSDB ou do governo. São Paulo é fundamental para o país, mas é muito importante que pensemos o Brasil de uma forma mais abrangente. Valor: O sr. acha que o governo Lula aumentou a "paulistização"? Aécio: A concentração paulista não é exclusividade do governo Lula. Ela já vem de governos passados. Não se trata de uma luta contra São Paulo, mas de uma luta pelo fortalecimento da federação. No caso do PSDB, o que temos agora nesse estágio na oposição, que espero que não seja muito longo, é revisitar o nosso programa. Valor: Por quê e em que aspectos?

As experiências do PSDB e do PT no governo nos levarão a formar uma aliança mais homogênea e melhor para o país"

Aécio: Porque o mundo mudou. Acho que a defesa da federação deveria ser a principal bandeira do PSDB. Hoje, a concentração de poder é muito maior do que era quando o PSDB governou. Ela se iniciou antes disso, cresceu com o PSDB e deu um salto no governo Lula, com o aumento das alíquotas da Cofins, da CSLL, com a CPMF. É um processo que precisa ser freado em benefício do país. O PSDB tem também uma grande oportunidade de se reaproximar de setores importantes. Valor: Quais? Aécio: A intelectualidade, os acadêmicos, os profissionais liberais. É preciso voltar a falar com a classe média e os setores sindicalizados. Até porque esses mesmos setores que se aproximaram do PT haviam se distanciado do PSDB. Muitos deles mostram enorme desencanto com determinadas ações ou falta de ações do governo Lula. Valor: Antes das eleições municipais, a oposição estava tão enfraquecida que Fernando Henrique chegou a dizer que o PT pretendia esmagá-la e criar um partido hegemônico. Após a derrota do PT, essa percepção mudou. O que aconteceu entre esses dois momentos? Aécio: As eleições municipais são decididas pelo componente municipal. Seria injusto e de um certo oportunismo considerarmos que a derrota da prefeita Marta (Suplicy) foi uma derrota do presidente Lula. As pessoas estão começando a dar atenção no Brasil àquilo que, desde o início do meu governo, nós demos: a gestão, a eficiência. A guinada que o PT deu em seu discurso em relação à política econômica permitirá que não tenhamos nos próximos anos eleições definidas pelo componente ideológico. Isso acabou. As eleições futuras serão decididas pelo componente administrativo. José Serra inspirou na população melhores condições pessoais de apresentar resultados em São Paulo. Valor: Mas, por que o PSDB entrou fraco na eleição e saiu fortalecido? Aécio: Talvez, tenha sido o cenário que o próprio PT criou. Valor: Que cenário? Aécio: A intromissão nas eleições municipais, jamais vista na História do país, de um partido que está no poder. O uso da máquina do governo como jamais se viu. Os gastos vultosos, inéditos, dando a impressão, principalmente em São Paulo, de que aquele era o último teste do governo, uma questão de honra. Muitas vezes, o interesse do PT se sobrepôs ao do governo. A entrada do presidente Lula em São Paulo e em outras campanhas não foi uma experiência boa para ele nem para o governo. Valor: Lula abriu mão do papel de magistrado? Aécio: Não quero questionar o presidente Lula porque tenho enorme respeito pessoal e amizade por ele. Ele é um homem de bem, vítima, como todos nós, das circunstâncias. Nas eleições, a pressão do PT sobre o presidente foi exagerada. Não se preservou o presidente, que é condutor de um governo e não de um partido. Tanto que estamos assistindo no Congresso ao preço que o PT e o governo estão sendo obrigados a pagar para reorganizar a sua base congressual, que foi muito sacrificada nas eleições pela volúpia do PT em ocupar todos os espaços. As eleições foram pedagógicas para o PT. Valor: Em que sentido? Aécio: Já percebo isso nas ações do presidente ao assumir pessoalmente a coordenação política do governo. Felizmente, perde força a tese de partido hegemônico, que não é boa para a democracia. Valor: O sr. zerou o déficit das contas de Minas num momento em que a maioria dos Estados reclama dos rigores da Lei da Responsabilidade Fiscal (LRF). Qual é a fórmula? Aécio: Vivemos o momento de maior fragilidade da federação na História da República. Há um acúmulo inédito de grande parte das receitas tributárias nas mãos da União, algo em torno de 70%. Isso cria inúmeras dificuldades para Estados e municípios. A grande discussão sobre a reconstrução do Estado brasileiro está na refundação da federação. Esta não pode ser uma questão vista como oposição ao governo ou dos Estados contra o governo. É algo absolutamente urgente. Há 15 anos, o total das contribuições que não são compartilhadas com Estados e municípios significava 10% do total do ICMS arrecadado por todos os Estados. Hoje, equivalem a 10% mais que o total do ICMS. Foi a partir desse quadro que fizemos um grande esforço em Minas. Valor: De que forma? Aécio: Tivemos aqui a ventura de conseguir resultados muito expressivos num espaço de tempo muito curto. Foram medidas duras, tomadas, sem exceção, no início do governo. Não temos fórmula mágica. Implementamos modelos novos de gestão, muito próximos do que se executa hoje na administração privada, mas antes fizemos o dever de casa: o enxugamento do Estado, que é antagônico ao que o governo federal fez. Valor: O sr. defende mudanças na LRF? Aécio: A LRF é um marco na administração pública. Oferece novos parâmetros, cobra responsabilidade dos governantes e é sem dúvida um grande avanço. Mas, é possível, sem ferir os conceitos fundamentais da lei, solucionar alguns problemas.

O PSDB também precisa se aproximar da classe média e dos sindicatos, dos quais se afastou quando esteve no poder"

Valor: Quais? Aécio: Déficit zero não pode ser um fim em si mesmo. Nenhum governo pode ter como meta apenas o ajuste fiscal. O déficit zero é apenas uma condição para que o Estado volte a investir e a crescer. Mas nós, por mais que tenhamos alavancado recursos externos, estamos investindo em 2005 recursos do Tesouro muito aquém do que necessitamos. Valor: Por quê? Aécio: Há dois gargalos. Um deles é o indexador da dívida, o IGP-DI, pelo qual é reajustada a dívida. Ele não é o mesmo indexador pelo qual é reajustada a receita dos Estados. Isso cria uma disparidade muito grande. Quando o ex-governador Eduardo Azeredo assinou a renegociação com a União, em 1996, a dívida de Minas era de R$ 17 bilhões. De lá para cá, o Estado pagou R$ 8 bilhões, mas, hoje, deve R$ 37 bilhões. É uma lógica que não fecha. Valor: Qual é o outro gargalo? Aécio: Pagamos de juros à União percentuais, que variam de 13% a 21%, sobre a receita líquida corrente. Só que essa receita é irreal porque contabiliza também os recursos da saúde e da educação, que são vinculados. São recursos sobre os quais não posso tirar 13% para pagar a dívida porque eles têm de ser gastos integralmente. Um projeto do senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT) propõe que essas despesas sejam abstraídas do cálculo da receita líquida. O comprometimento passaria a ser feito sobre a receita real. Hoje, o percentual pago pelos Estados sobre a receita real ultrapassa 20%. Valor: O sr. acha possível mexer no pacto federativo em meio ao forte ajuste fiscal promovido pelo governo? Aécio: Não só é possível. É absolutamente necessário. Com a burocracia que temos e os problemas históricos na transferência e aplicação dos recursos, quanto mais distante a execução da obra está de quem a financia, mais difícil é a fiscalização. Valor: Que diferenças o sr. vê entre a gestão Lula e o governo FHC? Aécio: O governo Lula vai melhor onde ele "terceirizou". Na área econômica, por exemplo. Mas, na verdade, o governo é vítima. Valor: Vítima de quem? Aécio: Do veneno que o próprio PT espargiu pelo país ao longo de muitos anos. Anos de insegurança, de descompromisso com os contratos e a realidade econômica internacional. Em muitos momentos o PT se vê obrigado a tomar medidas mais duras para compensar isso. Uma parcela do partido, por não concordar com a política econômica do próprio PT, por não estar convencida ainda, por não acreditar que esse é o caminho, bombardeia-a permanentemente. A cada reunião do Copom, surgem pressões para que não haja elevação dos juros. Isso leva o governo a demonstrar que não cede a pressões políticas e, por isso, a ser mais realista do que precisaria ser. Obriga-o a responder com um vigor maior seja na elevação dos juros, seja na do superávit. É um prejuízo que uma parcela do PT vem trazendo, eu diria até inconscientemente, ao país. Valor: O sr. não acha necessário um superávit de 4,5% do PIB? Aécio: Sempre achei que não. Uma parcela do superávit poderia estar sendo investida em infra-estrutura para garantir o crescimento sustentável nos próximos anos. Se continuarmos crescendo ao longo dos próximos anos, os gargalos vão se tornar quase intransponíveis. Valor: O que será tratado amanhã, em Brasília, na reunião que o sr. e outros governadores terão com o ministro Palocci? Aécio: O governo infelizmente não cumpriu o combinado numa questão vital, que é o ressarcimento de parte das perdas dos Estados que desoneram as exportações do ICMS. As exportações são hoje a principal âncora da nossa política econômica. Todos compreendemos isso. Falo como governador de um Estado que é responsável por 20% do superávit da balança comercial. Historicamente, o ressarcimento chegou a 50% das perdas. Em 2003, caiu para 30%. Neste ano, será de apenas 19%. Na orçamento de 2005, o governo não colocou nenhum centavo. Valor: Por quê? Aécio: Ele jogou a discussão para o Congresso e essa demanda passa a dividir espaço com o debate do salário mínimo e de várias outras discussões legítimas e justas. É como se o governo se omitisse da sua responsabilidade. Muitos Estados já não estão tendo condições de honrar os créditos das empresas exportadoras.