Título: Política canônica, mas...
Autor: Antonio Delfin Netto
Fonte: Valor Econômico, 04/04/2006, Brasil, p. A2

Um dos mitos mais ridículos que tucanos de alta plumagem tentam transmitir, persistentemente, é que a política de Lula é o "terceiro mandato" de FHC. Trata-se de um embuste evidente, pois a política de FHC terminou com o Brasil "quebrado" em 1998 e tendo de socorrer-se do FMI. A política econômica do segundo mandato não foi de FHC, mas sim a recomendada pelo FMI quando concedeu o empréstimo "salvador": superávit primário, liberação cambial, controle do endividamento e até a sugestão da magnífica Lei de Responsabilidade Fiscal. O segundo mandarinato também terminou mal, pois o país teve de voltar ao FMI para outro macro-empréstimo. A política econômica de Lula foi, sim, continuidade e aprofundamento da imposta pelo FMI a FHC. Em lugar de tomar empréstimo, Lula pagou o FMI... Aquela política, realmente, não é, sequer, do FMI. Trata-se de uma espécie de "estado da arte", de uma política econômica canônica utilizada hoje pela grande maioria dos países e que foi "adotada" pelo FMI:

1) Respeito estrito ao equilíbrio fiscal e controle do endividamento público pela manipulação do superávit primário;

2) Um banco central autônomo que dispõe de um único instrumento, a taxa de juro de curto prazo, para controlar um único objetivo, a taxa de inflação, mas considerando os custos dessa política em termos de crescimento; e

3) Um sistema de câmbio flutuante "sujo" para reduzir a volatilidade da taxa de câmbio de equilíbrio.

Como é evidente, existe uma imbricação profunda entre as três políticas: a monetária, a fiscal e a cambial. Só uma adequada coordenação entre elas permite o controle da inflação sem prejuízo para o crescimento; o controle fiscal sem aumento do endividamento e o equilíbrio externo. Essa coordenação veda a utilização do câmbio como instrumento de controle da inflação como ocorreu no primeiro quadriênio de FHC e está ocorrendo nos últimos dois anos de Lula.

-------------------------------------------------------------------------------- Lula aprofundou política do FMI --------------------------------------------------------------------------------

Por outro lado, se os itens 1 e 2 acima dependem apenas da coordenação política, o item 3 exige "condições iniciais" bem precisas. Não há nenhuma dúvida que o sistema de câmbio flutuante (sempre "sujinho") é o menos ruim, quando comparado com as demais alternativas, mas a sua aplicação exige:

1) Uma ampla participação do país no comércio exterior (exportação + importação em torno de 40% a 50% do PIB);

2) Uma ampla e diversificada pauta de exportação e importação para que nenhum produto (ou classe) tenha muita importância no comércio mundial e sofra a "dutch disease". Em outras palavras o país deve ser "price taker";

3) Uma dívida externa não maior do que 18 meses de exportação e bem distribuída no tempo;

4) Uma reserva de divisas livre equivalente a um ou dois anos de amortização da dívida externa; e

5) Uma política monetária que controle a demanda interna com taxas de juros reais num entorno razoável das taxas mundiais.

Com essas condições, mesmo nas situações de maior "stress" a taxa de câmbio flutuará pouco (entre 10% a 15% para cima ou para baixo) e será plenamente compatível com o sistema de "metas inflacionárias". E o que é da maior importância: não causará danos irreversíveis aos setores com "vantagens comparativas" nascentes.

Sem essas condições, a taxa de câmbio será muito volátil, como estamos vivendo, causando perturbações sérias sobre a produtividade do setor real da economia e reduzindo o ritmo de crescimento econômico, como prova, de forma convincente, recente estudo empírico (conforme P. Aghion e Outros - "Volatilidade da Taxa de Câmbio e Crescimento da Produtividade", NBER, W.P. 12117, março de 2006). O gráfico abaixo mostra a violenta volatilidade de nossa taxa de câmbio quando comparada com a da Coréia e dos EUA, no período jan./99 a fev./06: O real variou 45% para cima e para baixo da média, enquanto a moeda coreana variou apenas 15% para cima ou para baixo da média. O dólar (com relação a uma cesta das moedas mais importantes) variou entre mais e menos 20% com relação à média. A valorização do real, devida não apenas à melhoria de nossas exportações desde 2002, mas também à arbitragem permitida pela imensa diferença de taxas de juros reais internas e externas, transformou o real na moeda mais valorizada do mundo e o Brasil no "lanterninha" do crescimento mundial.