Título: Uma reforma anti-engambelação
Autor: Cláudio Gonçalves Couto
Fonte: Valor Econômico, 04/04/2006, Política, p. A6

O prestígio de nossa classe política nunca foi dos maiores e, no período recente, deteriorou-se ainda mais em decorrência do escândalo do "mensalão" e quejandos. Mas, além da corrupção, um dos fatores fundamentais para sua perda de prestígio decorre da falta de credibilidade. Ou seja, os políticos não são vistos pela população apenas como uma cleptocracia, mas também como um grupo social composto por mentirosos compulsivos, por indivíduos nos quais não é possível confiar simplesmente porque tudo o que dizem ou prometem é fruto apenas de suas conveniências imediatas e indigno de fé. Como instituições funcionam apenas preenchidas por indivíduos, a percepção popular de que nenhum deles é confiável mina a crença de que as instituições possam operar satisfatoriamente - e isso mesmo quando funcionam bem sob outros aspectos. O fato de que instituições democráticas operem satisfatoriamente apesar de preenchidas por políticos ruins não é um paradoxo, pois elas são desenhadas justamente para funcionar assim. Em termos clássicos, as instituições democráticas operam analogamente a um sistema de freios e contrapesos, opondo interesses a interesses e ambições a ambições. Noutros termos, igualmente clássicos, é o conflito entre vícios privados que gera benefícios públicos - daí a importância do confronto entre oposição e governo nas democracias constitucionais, apesar dos excessos cometidos por uns e outros nesse embate. Mas embora esta seja a lógica geral do sistema, ele nem sempre funciona tão satisfatoriamente quanto o necessário, pois as instituições não operam no vácuo, mas sob condições sociais, culturais e econômicas particulares. Além disso, não existem instituições democráticas perfeitas: elas precisam sofrer aperfeiçoamentos constantes, de acordo com as condições políticas particulares que um país enfrenta a cada momento. Por isso, mais do que "uma" reforma política, são necessárias contínuas "reformas políticas" ao longo do tempo. E elas dificilmente advirão em momentos de tranqüilidade: normalmente decorrem da percepção de que as coisas vão mal. O momento, portanto, não poderia ser mais oportuno.

-------------------------------------------------------------------------------- Políticos surrupiam escolha do eleitorado --------------------------------------------------------------------------------

Embora uma discussão como esta, na crise atual, evoque de imediato a questão da corrupção e do desrespeito ao Estado de Direito, remeter-me-ei contudo a um tema menos candente, mas nem por isso irrelevante. Refiro-me à questão do respeito dos políticos aos compromissos assumidos em campanha. Eles são fundamentais para a credibilidade da classe política, pois se uma vez no governo os representantes tomarem atitudes opostas às prometidas ao eleitor, de que modo este poderá levar em consideração o que é dito nas campanhas como um guia para sua escolha? E, no momento do voto, o eleitor tem apenas dois elementos para julgar os candidatos e seus partidos:

(1) observar o que eles fizeram quando ocuparam cargos anteriormente e (2) saber o que eles prometem fazer se eleitos. Diante disto, são episódios graves as renúncias de prefeitos, antes mesmo do primeiro terço de seus mandatos, para disputarem outros postos. O caso de José Serra, embora o mais célebre, não é único. Nas hostes petistas, por exemplo, figuram Marcelo Déda (ex-prefeito de Aracaju), o recém-reempossado ministro Tarso Genro (que há quatro anos renunciou à Prefeitura de Porto Alegre) e Antonio Palocci, que trocou a alcaidia de Ribeirão Preto pelo Ministério da Fazenda. Porém, contra o ex-prefeito paulistano pesa que sua possível renúncia foi um dos principais temas da campanha municipal de 2004, tendo ele sempre negado que ela viesse a ocorrer e até mesmo assinado documento no qual assumia o compromisso formal de não abandonar a prefeitura para disputar outros postos; mesma promessa quebrada por Palocci. Ora, se políticos não cumprem nem os compromissos registrados em cartório e que dependem apenas de sua vontade, como se pode confiar neles? Se pudéssemos voltar a quatro anos atrás, seria interessante perguntar aos paulistanos como eles votariam se Kassab fosse o candidato a prefeito pela coligação PSDB-PFL. É um tipo de pergunta que deveria ser incluído nas pesquisas de intenção de voto, para conferência futura: "Você votaria no vice?". Não há implicações diretas disto para o desempenho de Serra nas eleições estaduais, mesmo porque o eleitor escolhe não apenas "positivamente", mas também "negativamente" entre as alternativas: Serra leva vantagem sobre o petismo em crise, o malufismo falido e o quercismo zumbi. Mas isto não quer dizer que os eleitores se sentirão mais confiantes nas promessas do candidato que escolherem. E é justamente esse o problema: cria-se de saída um déficit de legitimidade pela falta de confiança. A solução para o problema é institucional: novas eleições sempre que um governante eleito renunciar ao cargo antes de sua metade. Isto criaria incentivos adicionais ao cumprimento dos mandatos e dos compromissos de campanha, além de impedir que o eleitor continue a comprar gato por lebre, ou Kassab por Serra, como queiram. Mesmo porque, havendo renúncia, o eleitor poderá escolher de novo, sem ser engambelado.