Título: Orçamento terá corte "necessário" para que se cumpra meta fiscal
Autor: Cristiano Romero
Fonte: Valor Econômico, 24/04/2006, Brasil, p. A3

O ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, avisa que, do jeito que está, o Orçamento aprovado pelo Congresso não pode ficar. A equipe econômica começa a definir hoje, segundo o ministro, o maior corte orçamentário dos últimos anos. O objetivo é adequar o Orçamento à meta do superávit primário das contas públicas, fixada para este ano em 4,25% do PIB. Segundo estimativa de técnicos da própria Comissão Mista de Orçamento do Congresso, será necessário um corte entre R$ 21 bilhões e R$ 23 bilhões. Ruy Baron/Valor Paulo Bernardo: "Temos muito a fazer, como regulamentar a Previdência dos servidores e as reformas sindical e trabalhista"

"Será um corte grande, o corte necessário. Não vamos deixar nenhuma margem de dúvida quanto ao cumprimento do superávit primário. É impensável fazer menos do que 4,25% do PIB", assegurou Paulo Bernardo nesta entrevista ao Valor.

Defensor da austeridade fiscal desde os tempos em que militava na oposição, Bernardo nega com veemência que o governo Lula tenha afrouxado o controle fiscal. Segundo ele, o superávit diminuiu nos últimos meses porque, ainda em 2005, o governo decidiu acelerar as liberações por causa das restrições legais que impedem a realização de obras durante o período eleitoral.

O ministro justificou o aumento do salário mínimo - de 12% acima da inflação -, reconhecendo que se trata de compromisso "político e ideológico" do governo. Bernardo admitiu, no entanto, que, para a economia crescer de forma mais acelerada, chegou o momento de o governo conter a expansão dos gastos correntes e promover novas reformas. "Para desonerar (o setor produtivo), não adianta: temos que reduzir as despesas, o que vai ser feito a partir de 2007."

Sobre a polêmica negociação realizada para aprovar o Orçamento, em que o governo concordou em incluir a construção de uma ponte num Estado (Sergipe) impedido pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) de tomar novos empréstimos, o ministro assegurou que não haverá liberações ilegais. A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Como o sr. responde à crítica de que há um descontrole nas contas do governo?

Paulo Bernardo: Isso é totalmente descabido. Se há uma coisa que marca o governo Lula é o profundo ajuste fiscal feito nesses três anos e quatro meses. O que há é que programas que tínhamos preparado e que demoraram para deslanchar estão andando hoje com muito mais velocidade. Além disso, tivemos uma situação anômala no Orçamento, que só foi votado na semana passada. Até por isso, incluímos no Orçamento de 2005 uma série de investimentos na rubrica "restos a pagar". Portanto, vínhamos executando em 2006 o Orçamento de 2005. Além disso, há uma restrição legal, dada tanto pela lei eleitoral quanto pela LRF, que vai dificultar os gastos no segundo semestre. Não há nenhum sinal de descontrole.

Valor: O governo anunciou medidas, como o aumento real de 12% do salário mínimo, que elevam de forma permanente os gastos. Isso não é preocupante para o ajuste fiscal de longo prazo?

Bernardo: Essas medidas têm impacto fiscal, mas estão sendo avaliadas. Atendem a um planejamento que fizemos e a compromissos políticos e ideológicos do governo, no caso do salário mínimo e do reajuste dos aposentados. Em outros casos, atendemos a demandas, que consideramos justas, de segmentos da sociedade, como o do agronegócio. No caso do mínimo, demos um reajuste muito pequeno em 2003 - de R$ 200 para R$ 240. No ano seguinte, aumentamos para R$ 260 e, aí, enfrentamos uma batalha no Congresso porque o Senado aprovou R$ 280. No ano passado, demos um reajuste maior - para R$ 300 - e, agora, para R$ 350. O salário mínimo tem um efeito extremamente benéfico na economia.

Valor: Mas tem impacto pesado nas contas da Previdência...

Bernardo: De fato, mantemos nossa preocupação com isso. Quando mandamos a LDO de 2006 ao Congresso, previmos déficit da Previdência de R$ 44 bilhões. Mas, nesse período, tomamos medidas para melhorar a gestão tanto das receitas quanto das despesas do INSS. Tivemos um aumento expressivo das receitas de 2004 para cá, estamos diminuindo as despesas com medidas de racionalização. No item auxílio-doença, que subiu de R$ 3 bilhões em 2002 para R$ 9 bilhões em 2004, já conseguimos conter o crescimento do gasto. O recadastramento de aposentados, com o cancelamento de benefícios, permitirá economia de R$ 1,2 bilhão em 12 meses.

Valor: Como justificar o socorro de R$ 15 bilhões a agricultores?

Bernardo: Não há um custo de R$ 15 bilhões. O custo fiscal está nas medidas de comercialização da safra, algo em torno de R$ 1 bilhão. Haverá também algum custo fiscal na prorrogação do prazo de pagamento das dívidas. Fizemos isso com muita parcimônia, sem fazer prorrogação indiscriminada de dívida. Estamos ajudando quem realmente foi afetado pela seca, quem sofreu perdas, quem está com dificuldades para comercializar a safra. Foi justo. Não há como negar que há uma crise no agronegócio.

Valor: No primeiro bimestre, o superávit primário recuou para 4,38% do PIB, diminuindo 0,45 ponto percentual em relação a dezembro. O governo central respondeu por quase metade da deterioração - 0,22 ponto percentual. Isso não coloca em risco o cumprimento da meta de 4,25% do PIB?

Bernardo: Se tem uma área onde o governo Lula conquistou credibilidade foi na área fiscal. Não teve governo até agora que tenha feito o ajuste que fizemos. No governo FHC, o primeiro mandato foi de gastança. No segundo, eles fizeram um ajuste importante, mas nós estamos fazendo, na média, um ponto percentual do PIB a mais de superávit primário por ano. Quando falamos de 0,22 ponto percentual do PIB, é algo perto de R$ 5 bilhões. De fato, nós nos programamos para fazer um gasto maior no primeiro semestre. O que já pagamos de investimentos, no primeiro trimestre, superou em R$ 2 bilhões a média do que foi pago nesse mesmo período nos últimos três anos. Vamos manter esse ritmo no primeiro semestre. Daí a dizer que isso não permitirá cumprir a meta fiscal vai uma distância astronômica. Sempre fizemos mais que o exigido e, neste ano, não acredito que vamos ter uma superávit muito acima dos 4,25%. Mas é impensável fazer menos.

Valor: Em 2004, o superávit chegou a 4,6%. Em 2005, a 4,84%. Por que o governo decidiu reduzi-lo agora?

Bernardo: Nos anos anteriores, tivemos uma pressão inflacionária maior. O Banco Central, por causa disso, pôs os juros num patamar mais alto, e isso pressionou as contas do Tesouro. O superávit maior teve um efeito positivo, na medida em que não permitiu que a relação dívida/PIB voltasse a subir. Neste ano, temos um quadro completamente diferente.

Valor: Por quê?

Bernardo: Porque temos a inflação convergindo para a meta (4,5%), alguns até falam que pode cair abaixo da meta; a taxa de juros está caindo e não há nenhuma razão para supor que vai parar de cair. Isto significa que vamos ter uma pressão menor sobre as contas públicas. Vamos cumprir a meta de superávit e isso não é compromisso do Paulo Bernardo ou do Guido Mantega, mas do presidente Lula.

Valor: O sr. não acha que foi um péssimo sinal o governo ter retirado da LDO os limites para despesas e receitas?

Bernardo: Não. Emitimos um sinal que ainda não foi entendido. No caso das despesas correntes, havíamos colocado um limite de 17% do PIB, mas havia algumas exceções e o Congresso aumentou essas exceções. Então, na prática, apesar do limite fixado pela LDO, vamos realizar 17,71% do PIB em 2006.

Valor: O limite, então, não funcionou?

Bernardo: Foi um bom teste porque está nos obrigando, excetuadas as despesas que ficaram de fora, a cumprir os 17%. O que estamos dizendo agora é que, em 2007, a obrigação será mais clara e objetiva: as despesas correntes, que excluem os investimentos e os juros, terão que cair pelo menos 0,1 ponto percentual do PIB. Isto significa redução de R$ 2,3 bilhões na despesa corrente.

Valor: Não é pouco?

Bernardo: Num mandato presidencial de quatro anos, temos condições de reduzir uns R$ 10 bilhões. Em dez anos, diminuiríamos um ponto percentual do PIB. Com isso, podemos desonerar ainda mais o setor produtivo e aumentar os investimentos públicos. Não é pouco porque vai ser a primeira vez que vamos conseguir diminuir de fato a despesa em relação ao PIB. Não adianta prometer redução de um ponto percentual na despesa. Como? Demitindo pessoal em massa? Parando de pagar os aposentados?

Valor: E o fim do limite para as receitas?

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Bernardo: Chegamos à conclusão de que ele não era adequado porque, em 2005, houve expressivo aumento de receita em alguns tributos, principalmente, no Imposto de Renda de Pessoa Jurídica e na Contribuição Social sobre o Lucro Líquido. Isso aconteceu porque as empresas tiveram resultados muito positivos em 2004. Não podemos, portanto, colocar um limite que impeça a Receita Federal de apurar um resultado como esse. É bom lembrar que, na outra ponta, fizemos desonerações importantes para o setor produtivo, o fim da cumulatividade do PIS e da Cofins e a correção da tabela do Imposto de Renda de pessoa física. Para desonerar, não adianta: temos que reduzir as despesas, o que vai ser feito a partir de 2007.

Valor: Apesar de ter elevado o superávit, o governo tem aumentado os gastos primários. Em 2005, eles cresceram 10,1% acima da inflação. Isso não é uma contradição?

Bernardo: As despesas, excetuadas as das Previdência, estão estabilizadas, há 11 anos, num patamar próximo de 10% do PIB. Onde há um crescimento mais forte é nas despesas previdenciárias. O que fizemos para enfrentar isso foi a reforma da previdência do setor público. Agora estamos adotando medidas importantíssimas para melhorar a gestão do INSS.

Valor: Especialistas acreditam que, com a carga tributária chegando a 38% do PIB e os gastos do governo nesse patamar, o potencial de expansão do PIB é limitado. No ano passado, o sr. lançou a idéia de um ajuste de longo prazo, cujo objetivo era justamente diminuir a carga e os gastos do governo. O plano foi abandonado?

Bernardo: Estou convencido, e esse convencimento é do governo e do presidente, de que a ação do governo deve propiciar uma melhora no ambiente de negócios no Brasil, combater as disparidades sociais e regionais e dar previsibilidade às políticas. Sob esse aspecto, temos muita coisa ainda para ser feita, mas não podemos desconhecer o que já foi feito tanto na macro quanto na microeconomia. Mesmo com o governo caminhando para o fim do mandato, com crise política, achávamos que era possível fazer um debate com a oposição para atacar a questão das despesas correntes. A experiência mostrou que isso não era viável.

Valor: Por que não?

Bernardo: Enquanto marcávamos um debate com senadores e deputados da oposição para discutir esse plano, o Senado aprovou um salário mínimo de R$ 384. Mostrou que não havia ambiente para esse debate.

Valor: Havia ambiente no governo? A ministra Dilma Rousseff (Casa Civil) chamou a proposta de rudimentar

Bernardo: Foi só um adjetivo. O importante é que reconhecemos que ainda há muitas reformas a serem feitas.

Valor: Quais reformas?

Bernardo: A reforma política, por exemplo. É impensável estabilizar o Brasil sem essa reforma.

Valor: O sr. acha que, sem reforma política, não é possível estabilizar a economia?

Bernardo: Não diria isso, mas acho que, para criarmos todas as condições com o objetivo de ter uma melhora no ambiente de negócios, para ter previsibilidade na economia, devemos ter uma reforma política. O presidente Lula fez a reforma do Judiciário, que ajuda a economia. Temos muito a fazer, como a regulamentação da previdência dos servidores públicos, a regulamentação do direito de greve dos servidores, a reforma sindical e trabalhista.

Valor: Na LDO, o governo diz que, se o Congresso não aprovar o Orçamento até 31 de dezembro, a partir de janeiro será executada a proposta do Executivo. Esta não é uma medida autoritária?

Bernardo: Mandamos uma proposta que precisa ser aprovada pelo Congresso. Os parlamentares é que dirão se a regra vai ser essa ou não. Certamente, existe disposição para o diálogo, para acharmos uma alternativa, mas esse dispositivo responde a uma situação que vivemos até a semana passada. Estávamos nos aproximando do fim de abril sem Orçamento aprovado. Talvez, tenha faltado um pouco de conversa, mas, de fato, a regra atual da LDO permite que o governo funcione normalmente.

Valor: Por que o sr. se queixa, então, do atraso na votação?

Bernardo: Porque não podemos fazer os investimentos.

Valor: Mas, o sr. mencionou que o governo aumentou os investimentos em R$ 2 bilhões no primeiro trimestre.

Bernardo: Aumentou porque pusemos no Orçamento do ano passado e estamos executando. Sem Orçamento, ficam prejudicados, além dos investimentos do governo federal para este ano (R$ 14,7 bilhões), os investimentos das estatais, que planejam aplicar R$ 41 bilhões em 2006. Só a Petrobras vai investir R$ 32 bilhões. O desempenho dos investimentos da Petrobras pode significar um pouco mais ou um pouco menos de crescimento da economia. Por isso, queremos discutir novas regras. Uma idéia é adotar, também para os investimentos, o duodécimo, ou seja, a liberação de 1/12 por mês quando o Orçamento não tiver sido aprovado.

Valor: Para aprovar o Orçamento, o governo concordou em incluir projetos, como o da construção de uma ponte em Sergipe, que desrespeitam a LRF.

Bernardo: Posso assegurar que nada será executado ao arrepio da lei.

Valor: O Congresso aprovou o Orçamento reestimando receitas e despesas. Haverá cortes?

Bernardo: As votações do Congresso são legítimas. Eles reestimaram as receitas para cima e incluíram despesas. Agora, temos a responsabilidade de executar o Orçamento, atendendo aos pressupostos da política macroeconômica, o que inclui o cumprimento da meta de superávit, uma gestão financeira e orçamentária responsável, o atendimento aos ditames da LRF. Tudo isso vai pesar na análise do Orçamento aprovado. Vamos ter que contingenciar.

Valor: No ano passado, o governo cortou R$ 16 bilhões em 2005. Quanto cortará agora?

Bernardo: Não tenho o número ainda, mas sei que será um corte grande, o corte necessário. Não vamos deixar nenhuma margem de dúvida quanto ao cumprimento do superávit primário de 4,25% do PIB.