Título: Um foro especial para pessoas privilegiadas
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 24/04/2006, Opinião, p. A10
Não foi sem constrangimentos que o ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal (STF), relator da denúncia apresentada pela Procuradoria Geral da República contra 40 pessoas envolvidas no escândalo do mensalão, fez a previsão de que a tramitação do processo demorará anos. Os 11 ministros do STF, mais o procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza, ao final de mais de um ano de escândalos, tornaram-se os únicos responsáveis por um processo que envolve ex-ministros, deputados, assessores e empresários numa intrincada teia de corrupção. A incumbência solitária do STF deve ser atribuída a uma estranha figura jurídica conhecida como "foro especial" ou "foro privilegiado", que faz bater às portas da mais alta Corte todos os processos contra ministros, deputados e presidente da República, e de todas as pessoas sem cargos políticos que tenham sido denunciados junto. São eles os privilegiados da justiça.
O ministro Joaquim Barbosa sabe disso. Tanto que qualificou o foro privilegiado de uma "excrescência tipicamente brasileira" e chegou a designar essa figura jurídica como a "racionalização da impunidade". Cair um processo desse nas mãos do Supremo é a garantia de, no mínimo, retardar qualquer julgamento. Ainda nas palavras do ministro, "o Supremo não tem estrutura para instruir processo. Não tem vocação para julgar esse tipo de ação. O Supremo é vocacionado para julgar questões abstratas e não para analisar provas".
O foro especial, ou privilegiado, ou por prerrogativa de função, vem sendo ampliado ou restringido desde a Constituição de 1988, dependendo dos interesses de ocasião.
No ano 2000, o STF derrubou a chamada Súmula 394, que assegurava foro privilegiado não apenas a ministros, deputados, senadores e presidente que estivessem no poder, como àqueles que já haviam saído do cargo mas respondiam por crimes cometidos no desempenho da função pública. Dois anos depois, todavia, o Congresso aprovou a Lei 10.628, que restabeleceu o privilégio aos ex-ocupantes de cargos públicos. O STF julgou a lei inconstitucional e o Congresso acatou a interpretação na reforma do Judiciário, quando foi mantido o foro apenas para o ocupante de cargo público durante o exercício de sua função. Antonio Palocci, por exemplo, livrou-se de ser indiciado no inquérito que investiga irregularidades durante sua gestão como prefeito de Ribeirão Preto porque ocupava o posto de ministro da Fazenda. Fora do cargo, poderá ser acionado pelo Ministério Público e pela Polícia Civil de São Paulo.
O início dos trâmites processuais contra os 40 denunciados pelo procurador-geral no STF praticamente interrompe todas as investigações feitas nos Estados. O advogado do empresário Marcos Valério já pegou carona no foro especial dos deputados envolvidos no escândalo do mensalão e pediu à Polícia Federal a devolução do computador de seu cliente, que estava retido para investigações. A PF teve que paralisar outros procedimentos de investigação dos delitos pois, a partir da denúncia ao Supremo, não pode mais produzir provas ou fazer novas diligências sem antes ouvir a Corte da Justiça.
O foro privilegiado tem servido a várias causas. Livrou, por exemplo, o ex-ministro Ronaldo Sardenberg de uma condenação em primeira instância, com a ajuda de uma decisão do STF. No governo Lula, uma medida provisória que equiparou o Banco Central aos ministérios deu foro especial para o presidente da instituição, Henrique Meirelles, e longa vida ao processo em que ele responde pela acusação de sonegação fiscal, evasão de divisas e crime eleitoral.
O STF não dispõe de estrutura ou mecanismos para deliberar rapidamente sobre uma gama imensa de acusações, evidências e provas. Essas limitações podem levar a denúncia feita pelo procurador-geral, elogiadíssima por sua neutralidade, a perder sua efetividade. Afinal, o foro especial, como bem diz o ministro-relator, é a racionalização da impunidade. Seria mais justo para com os brasileiros comuns, sujeitos aos rigores da justiça, que o Congresso acabasse com o foro especial que, a pretexto de preservar a integridade do mandato ou da função pública, acaba transformando a esfera pública numa rede de proteção para infratores que não querem responder pelos seus crimes.