Título: As peripécias do dólar e o poder americano
Autor: Luiz Gonzaga Belluzzo
Fonte: Valor Econômico, 04/04/2006, Opinião, p. A15

O gesto do presidente Richard Nixon, em 1971, ao decretar a inconversibilidade do dólar em relação ao ouro teve conseqüências que os protagonistas e observadores da época foram incapazes de avaliar. Depois da desvinculação do ouro em 1971 e da introdução das taxas de câmbio flutuantes em 1973, a demanda da moeda americana para transações e como reserva praticamente entrou em colapso, dando origem a um instável e problemático sistema de flutuações cambiais. O dólar "flutuava" continuamente para baixo. Sendo assim, não era de espantar que o papel da moeda americana nas transações comerciais e financeiras começasse a declinar, assim como a sua participação na formação das reservas em divisas dos bancos centrais. A continuada desvalorização do dólar, ao provocar a queda das receitas e do valor das "reservas de óleo" denominadas na moeda americana, está também na origem dos dois choques do petróleo deflagrados em 1973 e 1979. Esta "crise do dólar" chegou a suscitar, no final dos anos 70, as tentativas de sua substituição por Direitos Especiais de Saque, ou seja, ativos líquidos emitidos pelo Fundo Monetário Internacional e lastreados em uma "cesta de moedas". A decisão do Fed de subir unilateralmente as taxas de juros americanas em outubro de 1979 (antes do segundo choque do petróleo) foi uma resposta à investida de europeus e japoneses, tomada com o propósito de resgatar a supremacia do dólar como moeda de reserva. Ao impor a regeneração do papel do dólar como standard universal através de uma elevação sem precedentes das taxas de juros em 1979, os EUA, além de deflagrarem uma crise de liquidez para os devedores do Terceiro Mundo, deram o derradeiro golpe nas pretensões de reformar a ordem monetária de Bretton Woods. Na verdade, neste momento - argumenta corretamente Michael Hudson, os EUA estavam impondo aos detentores de excedentes em dólar o US Treasury Bill Standard, um padrão monetário cujos ativos líquidos de última instância passaram a ser os títulos de dívida do Tesouro americano ampliando o poder de seignoriage da moeda americana. A partir de então, libertos das cadeias da conversibilidade e da paridade fixa com o ouro, os EUA podem atrair capitais para os seus mercados e se dar ao luxo de manter taxas de juros moderadas, fenômeno que se acentua nos anos 90 com a acumulação de reservas pelos países asiáticos a partir da ampliação dos déficits comerciais crescentes com a área.

-------------------------------------------------------------------------------- A concorrência capitalista torna efetiva a sua razão interna, engendrando o monopólio, o que significa impor barreiras a novos competidores --------------------------------------------------------------------------------

Tais mudanças devem ser entendidas como um dos fatores centrais que determinaram os movimentos de globalização financeira de internacionalização produtiva que se seguiram à desorganização do sistema monetário e de pagamentos criados em Bretton Woods, no final da Segunda Guerra Mundial. A efetividade das políticas anticíclicas nos Estados Unidos está fundada na articulação estrutural entre o sistema de crédito, a exuberante expansão do consumo privado, a diáspora da indústria manufatureira para regiões "mais competitivas", o enorme déficit comercial e a gestão das finanças do Estado, particularmente da dívida pública. Esse formato expressa a natureza peculiar do poder econômico americano: a fusão de funções e de interesses explicita o caráter essencialmente "coletivista" (e macroeconômico) dos processos centrais de reprodução e de mundialização do capitalismo realmente existente. As relações entre Estado e mercado (uma forma imperfeita de exprimir as relações entre política e economia) não são "externas", de mero intervencionismo. São orgânicas e constitutivas. Nos tempos da "economia global", tais formas socializadas do poder privado permitem diversificar a riqueza de cada grupo, distribui-la entre os vários mercados nacionais e assegurar o máximo de ganhos patrimoniais, se possível no curto-prazo. Os agentes destas operações são as instituições da finança privada. São elas que definem os preços de venda, os métodos de financiamento, a participação acionária dos grupos, as estratégias de valorização das ações. A garantia final - mas certamente não definitiva - do processo de valorização de ativos é a existência de um estoque de ativos líquidos e seguros emitidos pelo governo do país hegemônico. Entre 2001 e 2003, por exemplo, política monetária americana funcionou de forma anticíclica: a autoridade monetária satisfez a demanda dos market makers por papéis mais líquidos e seguros. Essa providência manteve a rentabilidade das carteiras destes agentes ao reduzir o seu custo de carregamento. Ao mesmo tempo, o superávit fiscal tornou-se disfuncional, tanto do ponto de vista macroeconômico quanto da composição dos patrimônios privados. O setor privado, na recessão, demanda papéis do governo como forma de preservação da riqueza líquida, substituindo, na margem, a aquisição de papéis privados. No mercado "competitivo" do capitalismo formado por empresas gigantes na era da desregulamentação e da liberalização, o capital precisa existir sob a forma "livre" e líquida e, ao mesmo tempo, crescentemente centralizada. Só assim pode revolucionar periodicamente as bases técnicas da economia, submeter enormes contingentes de força de trabalho a seu domínio, criar novos mercados. Apenas desta maneira as relações do capital podem fluir sem obstáculos para colher novas oportunidades de lucro, ameaçando, concomitantemente, a eficácia das estruturas produtivas imobilizadas ao longo do processo anterior de acumulação. Há, portanto, simultaneamente dinamismo e estagnação, avanço vertiginoso das forças produtivas em algumas áreas e setores combinado com a regressão em outras partes. Mais do que nunca, a concorrência capitalista torna efetiva a sua razão interna, engendrando o monopólio, o que significa impor barreiras à entrada de novos competidores, sejam eles empresas ou países.