Título: O desafio de evitar que 2006 repita 2004
Autor: Cristiano Romero
Fonte: Valor Econômico, 05/04/2006, Brasil, p. A2

No momento em que a economia brasileira parece estar se posicionando para, finalmente, viver um ciclo de crescimento sustentado, é importante mostrar os riscos que podem, novamente, comprometer o velho sonho. Em 2004, quando o PIB cresceu 4,9%, o país era só otimismo. Um ano depois, reinou o desânimo - a economia cresceu míseros 2,3%. Na semana passada, o Banco Central previu bons eventos: o PIB crescerá 4% em 2006, com a inflação sob controle e espaço para a redução da taxa básica de juros (Selic). Na "Carta do Ibre", publicação do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas, Luiz Guilherme Schymura expõe os riscos da trajetória atual. Além de economista respeitado, Schymura tem crédito. Na contramão de muitos analistas, ele fugiu da explicação fácil, sendo um dos primeiros a enxergar que a principal causa da forte valorização do real frente ao dólar não foram os juros altos praticados pelo BC. A "causa básica" do avanço do real foram as mudanças estruturais quer permitiram ao país desenvolver um comércio exterior pujante. Esse processo foi acelerado pelo forte crescimento da demanda global por "commodities" produzidas no Brasil. "Como a crença numa sobrevalorização artificial da moeda nacional ainda está embutida no posicionamento de uma parte expressiva do mercado, os elevados juros internos pressupõem uma expectativa de desvalorização cambial futura", diz Schymura na "Carta do Ibre" que será divulgada na próxima sexta-feira. Os riscos começam aí. A tendência é que os investidores estrangeiros se convençam de que a valorização do real é justificada pelos fundamentos da economia e não por uma conjuntura passageira. Se eles acreditarem que o governo implementará reformas pró-crescimento, os juros internos vão se tornar mais atraentes. Isso provocará a entrada de capitais, o que, por sua vez, pressionará o real, valorizando-o. Schymura chama a atenção para um fato desagradável: a inflação dos bens não-comercializáveis (educação, saúde, aluguel, restaurantes etc.) não está caindo. A alta média desses preços está em torno de 6% ao ano, acima, portanto, da meta de inflação fixada para 2006 e 2007 - de 4,5%. Quando promoveu, em 2004, um forte aperto monetário para conter as pressões inflacionárias, o BC suscitou discussões sobre os verdadeiros efeitos dos juros no Brasil. Pouco ou nada afetados pelo câmbio, os preços dos bens não-comercializáveis seriam os mais vulneráveis aos efeitos dos juros sobre a demanda agregada. O fato, portanto, de um juro real de 13% ao ano não ter derrubado esses preços acende, na opinião de Schymura, uma luz amarela. A boa notícia é que os preços dos bens comercializáveis com o exterior foram a nocaute diante da valorização do real. Como os preços administrados (telefone, energia etc.) são, em geral, atrelados a índices gerais de preços, e estes refletem as variações da taxa de câmbio, a sua correção ao longo deste ano será pequena, ajudando o BC a cumprir a meta de inflação.

-------------------------------------------------------------------------------- Schymura aponta os riscos do momento --------------------------------------------------------------------------------

Diante disso, a tendência é que, mantida a atual calmaria no cenário externo, o Brasil caminhe para ter juros reais de um dígito, de 7% ou 8%, ainda elevados se comparados aos praticados no mundo desenvolvimento, mas bem inferiores aos do passado recente do país. À boa expectativa segue-se um alerta. "Mas é exatamente a teimosa manutenção dos preços dos bens não-comercializáveis no nível atual que leva à indagação de se, de fato, estamos caminhando na direção sonhada", pondera Schymura. Haveria mais de uma razão, segundo o economista, para que a política monetária tivesse pouco efeito sobre os preços desses bens. Um deles seria a elevada participação dos chamados créditos direcionados (os empréstimos para habitação e agricultura, os financiamentos do BNDES, por exemplo) na economia. Isso tornaria pequeno o impacto da taxa Selic sobre a demanda. Uma outra explicação seriam os fatores que teriam atuado na contramão dos objetivos do BC quando elevou os juros em 2004. Um dos mais citados pelos especialistas foi a expansão do crédito ocorrida na economia por meio de medidas reguladoras, como a autorização para os chamados empréstimos consignados em folha de pagamento. "Todas essas explicações são plausíveis, embora nem todas sejam incontroversas", ressalva Schymura. Nesse momento de sua análise, o economista da FGV traz à discussão um elemento que, constantemente, é relegado pela maioria dos analistas: o impacto inflacionário e neutralizador da política monetária do BC sobre a demanda provocado pela expansão dos gastos públicos. É este, sem dúvida, o risco maior vivido pela economia brasileira. Desde novembro, o governo Lula vem abrindo as torneiras sem constrangimento. O resultado está aí. Fábio Giambiagi mostrou há dois dias, no Valor, que o gasto primário (sem considerar a despesa com juros) do governo central cresceu, em termos reais, 10% no primeiro bimestre, depois de ter se expandido 10,1% em 2005. Antes de deixar o Tesouro, Joaquim Levy andava preocupado com o impacto inflacionário do aumento real de 12% que o governo está dando este ano ao salário mínimo. "Não se pretende aqui, evidentemente, lamentar que as camadas mais pobres da população tenham acesso a uma cesta mais ampla de bens e serviços. O problema, recorrente em questões econômicas, é que um impulso à demanda dos setores de mais baixa renda promovido por decreto, e sem suficiente respaldo no aumento da oferta, levará inevitavelmente à alta da inflação. Esta, por sua vez, em um segundo momento, punirá precisamente aquela parte da população, que não tem acesso a instrumentos financeiros para se proteger da corrosão do valor da moeda", observa Schymura. Este é o cerne da questão. Se não quiser repetir, em 2006, o que aconteceu em 2004, o governo deve anunciar logo o que pretende fazer para controlar a farra fiscal. "Qualquer processo de redução sistemática de juros nominais, para que não produza repique da inflação, deve vir acompanhado de algum tipo de reforma que sinalize a possibilidade de um ajuste das contas públicas que interrompa a contínua elevação dos gastos", ensina o diretor do Ibre.