Título: A sustentabilidade da integração do São Francisco
Autor: Francisco Jacome Sarmento
Fonte: Valor Econômico, 05/04/2006, Opinião, p. A15

Mais antigo projeto de infra-estrutura brasileiro, a integração do São Francisco foi cogitada pela primeira vez em 1818, como parte da política de combate ao flagelo da seca no chamado semi-árido setentrional, no qual se inserem Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco. Nas últimas três décadas, com a elaboração de projetos de engenharia, viu-se sobrepujada a limitação tecnológica do século XIX. Paralelamente à factibilidade conquistada pelo projeto, cresceram as resistências, quase sempre capitaneadas por grupos políticos dos Estados da bacia cedente. A partir de 2003, a inequívoca priorização do projeto trouxe o tema ao debate nacional. Nesse âmbito, valorosas contribuições foram incorporadas à concepção física e conceitual do empreendimento, alargando e reforçando sua fundamentação multidisciplinar. Na frente de oposição política ao projeto, a estratégia atualmente consiste em abrigar seus interesses sob um manto "técnico". Os protagonistas desse ardil confundem a imprensa e a opinião pública com argumentos aparentemente consistentes, mas que, na verdade, não resistem à mais superficial das análises. Vejamos. O mote predileto para atuação de tais personagens versa sobre a disponibilidade efetiva de água no São Francisco e no semi-árido setentrional. Por um lado, apregoa-se o São Francisco como um rio sem condição hidroambiental de atender à demanda de água do projeto. Por outro lado, alega-se que sobra água no semi-árido setentrional, numa simplória confusão entre "capacidade de armazenamento" - volume dos açudes cujo preenchimento depende do humor de São Pedro - com "disponibilidade efetiva de água" - armazenada pelos açudes nos anos favoráveis. A conclusão de importantes estudos relacionados com a bacia do São Francisco e com as bacias receptoras do semi-árido setentrional derrubou formalmente velhos argumentos difundidos há anos na captação de incautos para engrossar as fileiras dos que têm o projeto como o algoz do rio. O Plano Decenal da Bacia Hidrográfica do São Francisco (PDBHSF), elaborado pela Agência Nacional de Águas (ANA), acompanhado e discutido pelas Câmaras Técnicas do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF) e aprovado por esse último, demonstrou cabalmente que há disponibilidade para o atendimento de todas as necessidades hídricas da própria bacia e do semi-árido setentrional sem comprometer as folgas, ainda que as demandas sanfranciscanas praticamente tripliquem nos próximos 20 anos, algo historicamente sem registro. Crescendo à inédita taxa de 5,2% ao ano, a demanda na bacia sairia de 91 m³/s (2005) para 262 m³/s em 2025.

-------------------------------------------------------------------------------- Integração é a solução técnica mais adequada para resolver o problema dos centros urbanos do semi-árido setentrional --------------------------------------------------------------------------------

Assim, o PDBHSF adotou uma vazão de 360 m³/s para cobrir, repita-se, com folga, todas as demandas internas e externas da bacia, não podendo ser omitido que, caso fosse necessária a alocação de mais água para o setor de abastecimento humano, essa vazão poderia crescer para 370, 380... 400 m³/s, pois o abastecimento humano é prioritário em relação a qualquer uso econômico da água. Premissa constitucional - e humanitária - assegura o abastecimento humano como prioridade absoluta na alocação de águas. As deficiências de disponibilidade nos centros urbanos do semi-árido setentrional careceram de estudos técnicos apenas para quantificá-las, não para reconhecer sua existência. Essa é apresentada pela mídia a cada recorrência de seca. A disponibilidade per capita na região está abaixo do mínimo recomendado pela ONU, o que foi recentemente ratificado pelo Plano Nacional de Recursos Hídricos, divulgado em fevereiro pelo Ministério do Meio Ambiente. O que representa a correção dessa deficiência natural secular para 390 sedes municipais, onde habitarão 12 milhões de brasileiros, em termos de volume de água? A derivação de 26 m³/s através de dois canais - eixos Norte e Leste - o que equivale a ínfimos 1,4% da vazão regularmente liberada por Sobradinho. Para melhor explicitar que essa insignificância de volume não é o fator que quebraria a sustentabilidade ambiental do São Francisco, comparemos: esse volume de água, se retirado ao longo de 24 horas/dia, equivale ao que evapora na represa de Itaparica - onde desemboca a água liberada por Sobradinho - em apenas 10 horas. E ainda: há dezenas de meritórios projetos implantados e em implantação na bacia do São Francisco que derivam até quatro vezes esse volume, não para abastecimento humano, mas para irrigação, e nem por isso registrou-se celeuma como a atual. Os chamados eixos de integração - Norte e Leste - têm respectivamente uma capacidade de condução de 99 m³/s e 28 m³/s. Ora, se para consumo humano necessita-se de apenas 26 m³/s, por que uma capacidade total de 127 m³/s (99 + 28 m³/s)? Para garantir, apenas com os excessos de água nos períodos de cheia do São Francisco, a sustentabilidade socioeconômica do semi-árido setentrional. Como as cheias no São Francisco ocorrem, em média, em quatro anos por década, durante esses anos os canais funcionarão à plena carga, transferindo para os açudes do semi-árido setentrional a irrisória fração de 1% do volume das enchentes. Note que a sustentabilidade hídrica do desenvolvimento socioeconômico do semi-árido setentrional é alcançada pelo projeto sem comprometer em nada as iniciativas de mesma natureza na própria bacia, posto que volumes de cheia não têm utilidade econômica local, sequer servem à geração de energia, dado que as cheias passam pelos vertedores e não pelas turbinas instaladas. A integração do São Francisco é a solução mais adequada e econômica para resolver o problema dos centros urbanos do semi-árido setentrional e garantir seu desenvolvimento socioeconômico sem prejuízo aos Estados sanfranciscanos. Enquanto não forem desmascarados os argumentos pseudotécnicos, prevalecerá a visão de políticos que não enxergam uma nação, mas apenas uma bacia hidrográfica e seus interesses locais.

Francisco Jacome Sarmento é doutor em Recursos Hídricos, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e integrante da equipe técnica do Projeto São Francisco.