Título: Prefeitura define projeto para "Cracolândia"
Autor: César Felício
Fonte: Valor Econômico, 05/04/2006, Especial, p. A16

A Prefeitura de São Paulo decidiu "terceirizar" a revitalização do bairro de Santa Efigênia, na região central da cidade, conhecido como "Cracolândia". A proposta, denominada "concessão urbanística", será encaminhada para a Câmara dos Vereadores nos próximos dias. O processo para permitir o investimento imobiliário é inédito no país e a meta é viabilizar a demolição e reconstrução de uma área de 100 mil metros quadrados. A área atingida estará dentro do perímetro de incentivos fiscais criado em setembro do ano passado, em uma região entre as avenidas Rio Branco, Ipiranga, Cásper Líbero, Duque de Caxias e rua Mauá. Também entrarão no programa seis quarteirões da avenida Rio Branco fora do perímetro e , portanto, sem vantagens fiscais. Segundo estimativa do vice-presidente da Empresa Municipal de Urbanização (Emurb), Geraldo Biasoto, isto deverá significar R$ 100 milhões de investimento privado em construção civil e R$ 50 milhões de investimento da prefeitura na construção de equipamentos públicos, como área verde, calçada e iluminação pública. Para os investimentos públicos, a prefeitura pretende utilizar os recursos do empréstimo do BID para a revitalização do centro da cidade. De acordo com a proposta, a área será dividida em oito lotes, cada qual com dois quarteirões, que serão levados à licitação. Não está definido ainda se um mesmo investidor poderá concorrer a mais de um lote. O vencedor da licitação será o concorrente que prometer o maior investimento em menor tempo. As propostas serão analisadas por um comitê em que estarão representadas as secretarias de Serviços, Subprefeituras, Habitação, Verde e Meio Ambiente e Cultura. Cada lote terá uma vocação específica, determinada no edital: já está definido que haverá duas áreas para habitação, uma área para educação superior, outra para saúde e outra para entretenimento. A idéia é que as licitações sejam feitas de modo praticamente simultâneo, cerca de quatro meses depois de a Câmara aprovar a nova lei. Quem arrematar o lote terá que se comprometer a transformar 70% da área. A inovação maior da proposta está na maneira que será feita a transferência da titularidade das propriedades. "O vencedor da licitação irá tentar comprar diretamente as áreas que terá que transformar. O proprietário na área atingida poderá negociar diretamente dinheiro ou participação nos empreendimentos, mas sabendo que, se levar o processo a um impasse, ficará com uma pequena espada na cabeça: nós vamos desapropriar", disse Biasoto. O dirigente da Emurb esclareceu que será dada ao investidor a garantia de desapropriação pela prefeitura de toda área em que não houver acordo para a venda. Posteriormente, o investidor será obrigado a ressarcir a prefeitura do dinheiro gasto com a indenização. "É um modelo híbrido, envolvendo participação pública e privada", definiu Biasoto, afirmando que a prefeitura ficará à meio caminho de duas experiências internacionais de intervenções urbanas, a de Beirute e a de Barcelona. "Beirute é a radicalização do que estamos fazendo, só com dinheiro privado. Barcelona teve muito dinheiro público", afirmou. Em Beirute, o falecido primeiro-ministro do Líbano Rafik Hariri criou um fundo privado, o Solidaire, que captava dinheiro no exterior para comprar e reconstruir a capital libanesa, devastada pela guerra civil. Em Barcelona, o governo da região da Catalunha subsidiou investidores privados que restauraram 600 prédios na área central da cidade, por ocasião dos Jogos Olímpicos de 1992. O projeto da prefeitura surgiu depois de uma lenta maturação que impacientou os investidores privados. A prefeitura tomou a iniciativa, em janeiro, de chamar 23 empresas de construção civil para uma reunião com o então secretário de Serviços e Obras e subprefeito da Sé, Andrea Matarazzo, que assumiu esta semana a secretaria das subprefeituras. Entre as consultadas, estavam a Camargo Corrêa, Cyrela, Klabin Segall e Gafisa. Segundo o relato de Rodrigo Perroni, diretor superintendente de Desenvolvimento Imobiliário da Camargo Corrêa, desde o primeiro momento Matarazzo deixou claro que a prefeitura buscava um modelo em que não tivesse que arcar com as desapropriações, mas o formato inicial previa a formação de um fundo, que seria composto por recursos das diversas empresas, sob gestão compartilhada. Este fundo compraria as áreas urbanas e as distribuiria pelos proprietários de cotas. A primeira dúvida que se levantou era sobre a sustentação legal deste fundo, de acordo com Jaime Flechmann, diretor da Cyrela. Perturbava os investidores a ausência de licitação para a compra das áreas nos primeiros modelos estudados. Com os proprietários da área afetada, as reuniões do começo do ano foram ainda mais vagas. Em uma delas, segundo relato dos participantes, teria sido feita uma proposta esdrúxula. A prefeitura faria uma aproximação informal entre interessados em investir e potenciais vendedores. "Pelo que disseram, o governo municipal vai virar um escritório imobiliário", disse José de Jesus, dono de dois hotéis que serão desapropriados para a construção da nova sede da subprefeitura. Jamais se descartou, durante toda a fase de estudos, o modelo tradicional, em que a prefeitura desapropria a área e em seguida a licita. O modelo adotado não o abole inteiramente. Mas ainda assim, a prefeitura não estará imune a contestações judiciais. A possibilidade de se desapropriar um imóvel para dar a área uma destinação comercial é uma tese jurídica controversa. "Conheço a desapropriação só em nome do interesse público. A destinação de uma área privada a um empreendimento privado só pode ser feitas em casos muito específicos", afirmou o advogado imobiliário Adriano Gandur, para quem o novo modelo poderá ser contestado. "É evidente que o proprietário irá negociar em condições leoninas, sabendo que será desapropriado caso não aceite as condições que lhe são postas", disse. "É defensável judicialmente o argumento de que a revitalização do centro da cidade atende ao interesse público e, portanto, torna lícita a desapropriação", rebateu o advogado e urbanista Jorge Rubies, um crítico do projeto da prefeitura. "Estão cogitando mudar uma das regiões mais antigas da cidade, como se não houvesse edifícios de interesse histórico na região", afirmou. Segundo Biasoto, o risco de uma negociação abusiva será reduzido pela necessidade do investidor de ressarcir imediatamente o poder público depois de uma desapropriação. "Não irá compensar do ponto de vista econômico para o setor privado fazer uma negociação tão dura que leve todas os imóveis em foco a serem desapropriados pela prefeitura", disse Biasoto. Fazer com que Santa Efigênia migre de "Cracolândia" à "Nova Luz" foi uma das prioridades no curto governo do tucano José Serra. Com o subprefeito e secretário Andrea Matarazzo a frente, batidas fecharam vários hotéis em situação irregular e diminuíram de cerca de 140 para 30 o número de menores que se drogam nas ruas do bairro. Em setembro, a Câmara de Vereadores aprovou a instituição de um programa de benefícios. O investidor na região pode converter até 50% do valor de seu investimento em certificados aceitos para a quitação do IPTU e do ISS, durante cinco anos. Com a renúncia à prefeitura de Serra, a condução política do assunto estará nas mãos de especialistas no ramo de imóveis. O novo prefeito, Gilberto Kassab (PFL), é o vice-presidente da segunda região do Conselho Regional de Corretores Imobiliários (Creci). O secretário da Habitação, Orlando Almeida Filho - outro pefelista - já foi presidente do órgão.