Título: Canaviais já fervilham em busca de recordes
Autor: Mônica Scaramuzzo
Fonte: Valor Econômico, 05/04/2006, Agronegócios, p. B14

Cícero Júlio de Carvalho acorda todos os dias às 4 horas da manhã, prepara seu café e pega um ônibus para chegar ao trabalho pouco antes das 6 horas. O percurso rumo a um canavial próximo a Ribeirão Preto (SP), maior pólo produtor de cana-de-açúcar do país, demora cerca de uma hora. Até as 4 horas da tarde ele trabalhará na lavoura. Cícero Junqueira Franco acorda por volta das 7 horas, toma o seu café e vistoria sua fazenda antes de ir para a usina Vale do Rosário, em Morro Agudo (SP), onde é um dos principais acionistas. Vai de carro, para uma jornada que muitas vezes avança noite adentro. Os dois Cíceros são peças-chave do setor sucroalcooleiro, ainda que em extremidades opostas. Carvalho, que vive sua primeira safra como cortador de cana, está na base da pirâmide. Junqueira Franco, que trabalha desde 1962 na Vale do Rosário - onde hoje ocupa a vice-presidência - e teve participação importante na criação do Proálcool, na década de 70, está no pico. Cada um a sua maneira, os dois se preparam para dar início a mais uma colheita de cana no Centro-Sul do Brasil, que neste ano baterá novo recorde. A safra (2006/07) está estimada em cerca de 415 milhões de toneladas, 8% mais que em 2005/06. O Valor acompanhou um pouco da rotina dos dois Cíceros na semana passada. A reportagem visitou canaviais e usinas que iniciavam a colheita entre os dias 29 e 30 de março. Percorreu, no total, um trajeto de 510 quilômetros pelas cidades paulistas de Ribeirão, Morro Agudo, Orlândia, São João da Barra e Sertãozinho. Recém-chegado de Altos, no Piauí, Cícero de Carvalho faz sua estréia como cortador nos canaviais da fazenda Matinha, em Orlândia (SP), que faz parte da "área de corte" da Vale do Rosário. Como todo novato, sofre para aprender os atalhos da profissão. O "podão" (facão que corta cana) ainda estava mal afiado na última quarta-feira, mas Cícero tentava pegar o jeito para garantir maior produtividade no corte da matéria-prima e, conseqüentemente, uma melhor remuneração. Com a antecipação da colheita, a produtividade da cana anda contra o relógio, e ainda está, em média, 30% menor do que provavelmente será no pico da safra. A poucos quilômetros de distância, Cícero Junqueira Franco, acertava os últimos detalhes para que a usina Vale do Rosário começasse a operar a pleno vapor. Os equipamentos recebiam os últimos reparos antes de dar início à produção de açúcar e álcool. Mas o empresário contou que o grupo deverá investir R$ 150 milhões na construção de uma nova unidade em Frutal (MG) porque a capacidade de produção da Vale do Rosário atingiu o seu limite, de 5,5 milhões de toneladas. Expansões como essa viraram lugar comum no setor. Muitas usinas estão fazendo pesados investimentos para aumentar sua capacidade de moagem de cana. As projeções são de investimentos da ordem US$ 10,5 bilhões na construção de 89 novas usinas de açúcar e álcool até 2010, dos quais 19 já entram em operação nesta safra, segundo levantamento da União da Agroindústria Canavieira de São Paulo (Unica). Mas essas projeções de investimentos têm sofrido alterações quase mensais, acompanhando o crescente apetite de expansão dos empresários do setor e mesmo de novos investidores, principalmente de outros países. A expansão salta aos olhos. Às 7 horas da manhã de 29 de março, cerca de 50 trabalhadores se aglomeravam com carteira de trabalho na mão em busca de emprego na Vale do Rosário. O motorista de caminhão Carlos Roberto Ribeiro de Souza, responsável pelo transporte da cana até a usina, começou a trabalhar na usina no dia 23 de março. "Foi fácil conseguir esse emprego, graças a Deus ", comemorou. Para os cortadores de cana, as vagas também aumentaram. A Companhia Energética Santa Elisa, de Sertãozinho, contratou 10% mais nesta safra, informou Anselmo Lopes Rodrigues, diretor superintendente do grupo. A usina deverá processar 7,2 milhões de toneladas de cana neste ciclo, já incluindo a moagem de 1,1 milhão da nova usina do grupo, a Continental, que já começa a operar neste ano a pleno vapor. Estimativa do Sindicato dos Empregadores Rurais de Ribeirão Preto indica que o número de empregos deverá crescer 5% nesta temporada 2006/07 em relação ao ciclo 2005/06. Atualmente, o setor é responsável por cerca de 350 mil empregos diretos no país. "As usinas ainda estão contratando para esta safra", afirmou Silvio Palvequeres, presidente do sindicato. De acordo com Palvequeres, o sindicato está negociando um piso fixo para a categoria em torno de R$ 900. Hoje o piso está em R$ 410, mas os trabalhadores podem ter uma remuneração maior de acordo com sua produtividade nas lavouras. A busca por maior produtividade nos canaviais é a principal preocupação da equipe da Pastoral do Migrante de Guariba, região de Ribeirão Preto. A entidade acompanha a rotina desses trabalhadores desde que mortes por excesso de trabalho foram verificadas nos canaviais. A pastoral esteve nas cidades maranhenses de Timbiras e Codó, na primeira quinzena de janeiro, para acompanhar a migração dos cortadores até São Paulo. Essas duas cidades juntas "exportaram" este ano cerca de 4 mil trabalhadores para os canaviais paulistas, segundo Inês Facioli, coordenadora da pastoral. Há três safras trabalhando como cortador de cana, Francimar Alexandre dos Santos, mais conhecido como "Bode", de 22 anos, é considerado um dos mais produtivos da Fazenda Macuco, localizada na cidade de Sertãozinho e pertencente à Santa Elisa. "Bode" chegou a Sertãozinho aconselhado por seu irmão, também cortador, e chega a ganhar R$ 1.200 quando atinge uma média de 17 toneladas por dia de corte de cana. Com seu salário, ele ajuda a família, de Lago da Pedra, no Maranhão, com contribuições mensais. Com ensino fundamental completo, "Bode" diz que a vida de cortador é bem melhor que a rotina de roceiro que levava em sua cidade natal. Cícero de Carvalho só decidiu sair do Piauí porque "ouviu falar que cana dava dinheiro". Cícero Junqueira Franco sabe, com certeza, que a atividade sucroalcooleira vive de ciclos, e que o atual é um dos mais remuneradores. Os dois ainda não se encontraram, e talvez nunca se encontrem. Mas sabem que, pelo menos nesta safra 2006/07, têm pela frente uma nova colheita de recordes, que transformaram o setor no mais bem-sucedido do agronegócio do país no ano passado e que tendem a ser superados agora.