Título: Lula parte para o ataque
Autor: Craveiro, Rodrigo
Fonte: Correio Braziliense, 29/05/2010, Mundo, p. 26

Presidente discursa durante a abertura do Fórum Mundial da Aliança de Civilizações, um dia após receber críticas da secretária de Estado norte-americana, e condena postura inflexível do Ocidente em relação ao Irã

Se alguém imaginava que a chancelaria brasileira se calaria depois das críticas dos Estados Unidos à política externa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, teve ontem uma surpresa. Em discurso de abertura do III Fórum Mundial da Aliança de Civilizações, no Rio de Janeiro, o próprio Lula enviou um recado contundente à secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, sem citar o nome da ex-primeira-dama.

Na quinta-feira, Hillary havia citado o Brasil em pronunciamento no Brookings Institution, em Washington. ¿Certamente, temos divergências muito sérias com a diplomacia brasileira no que concerne ao Irã¿, declarou, referindo-se ao pacto firmado com o Irã para enriquecimento de urânio na Turquia. ¿Queremos uma relação com o Brasil que resista ao teste do tempo¿, acrescentou. Na manhã de ontem, durante o evento, Lula disparou: ¿O Brasil aposta no entendimento que faz calar as armas, investe na esperança que supera o medo, faz da democracia política, econômica e social sua única e melhor arma¿.

Sob o olhar atento do primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, e do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, Lula lembrou que ¿posições inflexíveis só ajudam a confrontação e afastam a possibilidade de soluções de paz¿. E recordou que, com esse princípio, ele e o colega turco viajaram a Teerã, em busca de uma solução negociada para a crise nuclear. ¿O mundo precisa do Oriente Médio em paz e o Brasil não está alheio a essa necessidade¿, argumentou. Erdogan aproveitou para atacar Washington. ¿Aqueles que acreditam que o mundo é feito para seu próprio benefício não compreendem a dinâmica da integração¿, disse. ¿É muito errado impor seus valores e seu julgamento a outros.¿

A artilharia contra os Estados Unidos não parou por aí. Lula disse que defende ¿um planeta livre de armas nucleares¿ e o uso pacífico da energia atômica. ¿Acreditamos que a energia nuclear deve ser um instrumento para a promoção do desenvolvimento, não uma ameaça¿, afirmou, lembrando que o Brasil tem sólidas credenciais para exigir o desarmamento(1).

O chefe de Estado brasileiro também abordou, em seu pronunciamento, a crise financeira global. ¿Incapazes de assumir os seus próprios erros, alguns governantes buscam transferir o ônus da crise para os mais fracos¿, criticou. Sob a condição de anonimato, uma alta autoridade norte-americana afirmou à agência Reuters que o acordo Brasil-Turquia-Irã não é algo a ser levado em conta. ¿Na nossa visão, a declaração conjunta fica aquém do que é necessário. Indiferentemente desta proposta, é importante que prossigamos em Nova York para adotar a resolução.¿

Analistas Por telefone, de New Brunswick (Nova Jersey), o analista político Hooshang Amirahmadi ¿ fundador e presidente do Conselho Iraniano-Americano ¿ elogiou a posição de Lula. ¿Não existe crise entre o Brasil e os Estados Unidos. Você não cria uma crise ao tentar produzir a paz. Lula tenta trazer paz, entendimentos e compromissos. Defende flexibilidade, em nome da paz¿, afirmou o iraniano ao Correio. Segundo ele, os Estados Unidos precisam reconhecer sua postura de confrontação com Teerã, ao vislumbrar somente a possibilidade de sanções no Conselho de Segurança da ONU. ¿O Brasil está fazendo a coisa certa. Ele não precisa se desculpar com ninguém¿, comentou. Hooshang lembra que o acordo para troca de urânio era uma proposta original dos EUA. ¿Ele não vingou na época porque tanto a Casa Branca quanto Teerã estavam inflexíveis em alguns pontos¿, acrescentou. ¿Os EUA deviam ser gratos ao Brasil e não fazer barulho por uma coisa que eles defendiam no passado.¿

O também iraniano Ali Alfoneh discorda do conterrâneo. Para o analista do American Enterprise Institute (em Washington), a mediação de Brasil e Turquia não serve à paz. ¿A República Islâmica usa a declaração de Teerã como outra tática de manobra para ganhar tempo, prosseguir com o enriquecimento de urânio e atrasar o regime de sanções internacionais¿, avaliou Alfoneh, por e-mail. Ele considera correta a ação dos EUA, ao identificar o acordo como uma estratégia ¿enganadora¿. ¿Os Estados Unidos se questionam por que o Brasil está ajudando o principal adversário deles no Oriente Médio¿, disse.

1 - Pacto com o Egito Os Estados Unidos e o Egito firmaram ontem um pacto para pressionar o governo de Israel a abrir mão de qualquer arma nuclear que o aliado da Casa Branca possua. O objetivo é tentar prevenir o fracasso das negociações sobre um acordo para reforçar o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), assinado em 1970. Como Israel não é signatário do TNP, Washington e Cairo esperam, além da assinatura, o acesso absoluto da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) às instalações nucleares do país.

MENSAGEM DE BAN KI-MOON O secretário-geral da Organização das Nações Unidas, Ban Ki-moon, desejou boa sorte ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva se algum dia desejar ocupar seu cargo. Em entrevista à TV Brasil, ao ser indagado se Lula seria um bom secretário-geral da ONU, o sul-coreano afirmou: ¿Ouvi falar dessas especulações. O presidente Lula é um dos líderes globais mais importantes, mas não posso comentar esse assunto¿. ¿O posto é um enorme desafio. É preciso enfrentar inúmeros problemas globais e regionais. Eu desejo boa sorte a ele¿, acrescentou, durante visita ao Rio de Janeiro.

A existência de armas de destruição em massa torna o mundo mais inseguro. Os arsenais nucleares são peças ultrapassadas¿

O Brasil aposta no entendimento que faz calar as armas. Investe na esperança, que supera o medo¿

Posições inflexíveis só ajudam a confrontação e afastam a possibilidade de soluções de paz que a maioria aspira¿

Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do Brasil

Leia a íntegra do discurso do presidente Lula

Ouça a entrevista com o iraniano Hooshang Amirahmadi (em inglês)

Eu acho...

¿Consciente ou inconscientemente, o Brasil e a Turquia têm contribuído para as táticas de postergação da República Islâmica. No entanto, existe um consenso entre os membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas para não serem enganados pelas táticas enganosas da liderança iraniana.¿

Ali Alfoneh, iraniano, analista do American Enterprise Institute (em Washington)

Otimismo e paciência

Enquanto o presidente norte-americano, Barack Obama, pressiona por uma resolução no Conselho de Segurança da ONU, Teerã busca preservar o otimismo. O chanceler iraniano, Manouchehr Mottaki, admitiu ontem à agência France-Presse que seu país aguarda uma resposta positiva da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e das potências mundiais sobre o plano assinado com o Brasil e a Turquia. O ministro insistiu que qualquer sanção da ONU seria contraproducente. ¿Na minha compreensão, o grupo de Viena está considerando (o acordo) positivamente¿, disse Mottaki, durante um fórum de cooperação do Mar Negro, em Sófia. ¿Tão logo tenhamos a resposta, as negociações começarão¿, acrescentou. Pelas bases do pacto, Teerã enviaria metade de seu estoque de urânio pouco enriquecido para a Turquia e, meses depois, receberia um suprimento da substância processada, que poderia ser usado em pesquisas e na medicina.

O Irã enviou a notificação oficial do acordo à AIEA na última segunda-feira. Por sua vez, a AIEA a remeteu ao chamado Grupo de Viena ¿ formado por França, Rússia e EUA. Mottaki assegurou que, apesar da polêmica em torno do assunto, seu país ainda aguarda resposta do órgão da ONU e das três nações. No entanto, ele se recusou a especular sobre como o regime islâmico reagiria, se o acordo for rejeitado. ¿O Irã prefere olhar sobre o lado positivo (da questão). Ainda não recebemos qualquer sinal de que o pacto será recusado¿, admitiu. ¿Vamos manter nosso otimismo e uma postura positiva para convidar todos a uma solução. Essa é uma chance muito boa para construirmos confiança¿, acrescentou.

O chanceler do presidente Mahmud Ahmadinejad concordou que a imposição de mais punições contra o Irã não funcionará. ¿As sanções são uma política fracassada, que eles já testaram no passado. Se alguém estiver tentando se mover nessa direção, definitivamente perderá¿, afirmou Mottaki.