Título: Chíndia
Autor: Eliana Cardoso
Fonte: Valor Econômico, 06/04/2006, Brasil, p. A2

As populações da China e da Índia somam 2,380 bilhões de pessoas - oito vezes a população dos Estados Unidos. Mas seus produtos representam apenas 21% dos US$ 12,5 trilhões do PIB americano. A Chíndia ainda tem de percorrer muito chão para alcançar o tio Sam. O desconhecimento sobre os dois gigantes asiáticos alimenta o medo da globalização e contribui para a propagação de três equívocos: a Índia está prestes a repetir a façanha do crescimento chinês; o milagre chinês é um paradoxo, pois viola os princípios do "Consenso de Washington"; a mão-de-obra barata chinesa representa uma ameaça às economias do resto mundo. Arthur Kroeber joga o primeiro mito por terra no último número da revista "China Economic Quarterly". China e Índia nada têm em comum, exceto dois fatos: ambos os países estão na Ásia e contam com mais de um bilhão de habitantes cada. Suas histórias e estratégias, entretanto, são bem diferentes. O crescimento legitimou o governo chinês e suas reformas, enquanto o viés elitista da sociedade indiana transformou-se num empecilho ao desenvolvimento. Mas não foi o autoritarismo que ajudou o crescimento na China, nem foi a democracia que atrapalhou o crescimento indiano. China e Índia também não são complementares, ao contrário da China e outros países do Leste Asiático, que formam uma forte e integrada cadeia industrial. O segundo mito só se explica pelo gosto da controvérsia. A afirmação de que, para crescer, China e Índia não precisam observar os princípios estabelecidos pelo "Consenso de Washington" é balela. Pois é inegável que as reformas em ambos os países se deram na direção dos princípios que regem o Consenso. O caso da China é exemplar, pois o progresso econômico se assentou sobre as bases do equilíbrio fiscal, estabilidade de preços, abertura da economia, privatização das empresas públicas e introdução de leis a favor da propriedade privada e da facilitação dos negócios. Planos pilotos em poucas províncias antecederam cada uma das mudanças. O governo estudava o ataque a cada um dos gargalos que impediam o bom funcionamento da economia. E escolhia cada passo de forma que o seguinte viesse reforçar o anterior na conquista de resultados que permitissem a continuidade das reformas. Os primeiros passos vieram em 1978, com o anúncio de Deng Xiaoping de que ser rico é glorioso e a introdução de mercados para os bens agrícolas com preços livres. O aumento da produtividade agrícola liberou recursos para as empresas locais e a abertura da economia reforçou a revolução industrial na década de 1980.

-------------------------------------------------------------------------------- Sem reformas, a China seria hoje um zero à esquerda --------------------------------------------------------------------------------

Na década de 1990, o governo liquidou e vendeu milhares de empresas públicas. A participação do setor privado na geração de valor agregado subiu para 60% do PIB em 2003 (mais alto do que em muitos países da América Latina). A partir do final dos anos 90, a privatização do estoque de casas urbanas estimulou a indústria de construção e levou a uma verdadeira revolução comercial e financeira. A estratégia escolhida adiou as reformas financeiras que só agora começam a avançar. A partir de 2004, as autoridades monetárias passaram a flexibilizar as taxas de juros, com a permissão aos bancos de flutuar as taxas de empréstimos acima das taxas oficiais e de negociar as taxas de grandes depósitos de longo prazo. Também introduziram inovações financeiras para reduzir envolvimento oficial nos empréstimos. O setor informal ainda é responsável por grande parte dos empréstimos ( 55% dos empréstimos a fazendeiros). Ali, as taxas de juros, que eram bem mais altas que as oficiais, vêm declinando com a flexibilização dos tetos no mercado formal. Em 2005, seguindo o princípio do gradualismo e da experimentação, as autoridades monetárias anunciaram um programa piloto em quatro províncias para legalizar e regular o mercado informal de empréstimos. Embora seja mais fácil conseguir crédito no Brasil do que na China, hoje é mais fácil fazer negócios na China do que no Brasil, como indica o relatório do Banco Mundial ("Doing Business," 2005). Em meados da década de 90, a reforma tributária se fez a favor do aumento da eficiência. A carga tributária permaneceu baixa e hoje ainda representa apenas 16% do PIB, menos da metade da carga brasileira. Ao mesmo tempo, o déficit fiscal é muito menor do que o nosso: em 2005, foi apenas 1% do PIB. Nem tudo são rosas. A renda média urbana supera em três vezes a rural. A desigualdade entre o campo e a cidade, a cobrança de taxas pelas autoridades locais e a apropriação de terras por essas mesmas autoridades tornaram-se fonte de distúrbios, que em 2004 chegaram a 200 ocorrências por dia. A revista "The Economist" (25/3/2006) questiona se a China está preparada para dar os passos necessários para perpetuar o crescimento com paz social: a introdução do direito de posse da terra rural e o aprimoramento da democracia. O paradoxo de que a China teria crescido sem obedecer ao "Consenso de Washington" é apenas aparente. Não fosse a magnitude e a profundidade de suas reformas, a China seria hoje um zero à esquerda. Por último, é preciso refutar o equívoco de que a mão-de-obra barata da China ameaça nossas economias. Os benefícios que o crescimento da corrente de comércio chinês proporciona ao resto do mundo são formidáveis. A competição imposta pelas suas exportações obriga as empresas estrangeiras a aumentar a produtividade. O baixo custo dos produtos chineses ajuda a reduzir a inflação mundial. O superávit comercial da China triplicou em 2005. Mas à medida que os chineses forem aderindo aos padrões de consumo do mundo capitalista, seus superávits comerciais devem, pouco a pouco, desaparecer. Embora a China ainda seja pequena em relação aos Estados Unidos, sua demanda por bens importados cresceu de forma estupenda nos últimos anos. Assim é que ela poderá vir a substituir os EUA como motor do comércio e do crescimento no mundo.