Título: França vive nas ruas os dilemas da modernização
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 06/04/2006, Opinião, p. A14

Enquanto a rebelião de maio de 1968 apontava para o futuro, a revolta de milhões de jovens franceses que tomou contado país volta-se para a preservação do passado. O Contrato do Primeiro Emprego (CPE), um golpe de mão de Dominique Villepin, primeiro-ministro do governo de centro-direita de Jacques Chirac, apresentado por decreto e sem consulta prévia, foi deplorado nas ruas como um atentado a direitos conquistados. O governo busca tornar mais flexível as regras para os contratos - temporários - dos iniciantes na vida profissional. O fato é que a manutenção da lei anterior produziu um desemprego de 23% entre os jovens, um dos maiores da Europa, e o fim virtual dos empregos permanentes. Dois terços dos franceses entre 15 e 24 anos que estão empregados foram admitidos temporariamente. A batalha nas ruas da França é um grande teste para o porvir da quinta maior economia do mundo. A França tem há séculos a maior e mais poderosa burocracia da Europa. Ainda hoje, um quarto de toda a força de trabalho trabalha para o Estado - são 5 milhões de funcionários públicos. O Estado francês é intervencionista e altamente regulador, o que tem tornado cada vez mais agudas as contradições com o modelo predominante de livre mercado anglo-saxão. A ausência de emprego poderia ser, mas não é, um retrato de uma economia parada no tempo. Os lucros dos 40 maiores grupos franceses foram os que mais cresceram em 2005 - 50% - e as empresas francesas se colocaram em terceiro lugar no ranking de participação em fusões e aquisições no anopassado, segundo informa a revista "The Economist". A produtividade por hora do trabalhador francês é maior que a do americano, mas o primeiro trabalha bem menos que o segundo - faz 35 horas semanais. O movimento das empresas francesas em direção ao exterior lembra a lenta diáspora empresarial da vizinha Alemanha, terceira maior economia do mundo e com o mercado de trabalho estagnado. A migração representa uma saída ruim para os jovens revoltados - empregos serão criados, mas fora da França. A política francesa é muito peculiar. O governo que tenta remendar a legislação trabalhista está longe de ter um programa pró-mercado. Chirac chegou a declarar que o liberalismo "era uma ameaça maior que o comunismo" e Villepin forçou recentemente a fusão entre duas empresas francesas de energia para que uma delas, a Suez, não fosse engolida por uma companhia estrangeira. A mudança trabalhista é mais um passo dentre os que vêm sendo tomados para favorecer a contratação e os liberais dizem que eles são tímidos demais. Villepin tentou abrir frestas em uma legislação que exige longas e exaustivas negociações com a Justiça e com os sindicatos para qualquer demissão, coletiva ou individual. A CPE encurta o ritual, mas não deixa de impor compensações. O dispensado terá de ser remunerado com 8% do total do salário bruto do período que faltar para ele completar dois anos, aponta o especialista José Pastore ("O Estado de S.Paulo", 4 de abril). O empregador terá de recolher 2% desse saldo para uma agência de colocação e treinamento de mão-de-obra. Além disso, se a demissão se realizar antes do quarto mês, o empregador terá de pagar compensação adicional de 984 euros. Os estudantes angariaram a simpatia dos sindicatos, que temem que brechas criadas agora ameacem no futuro sua base de trabalhadores vitalícios. Apesar dos protestos de massa, o governo não voltou atrás. O Conselho Constitucional declarou a legalidade do dispositivo e o presidente Jacques Chirac o sancionou. Um recuo diminuiria as chances de qualquer dos candidatos da UMP às eleições, seja Villepin, seja seu rival de partido e governo, Nicolas Sarkozy, ministro do Interior. De qualquer forma, os choques que sacodem a França colocam-na diante do dilema de modernizar ou conservar um sistema que começa a emperrar. Pesquisa entre jovens franceses revelou que três quartos deles gostariam de ser funcionários públicos e garantir o emprego pelo resto da vida. É um sonho defensivo, diante de um mundo que se tornou instável e hostil. O desafio à sua frente é o mesmo de outros países europeus, o de reformar o modelo econômico sem destruir a medula do sistema de proteção social avançado já construído. Não há um caminho claro nem fácil para isso. Até agora, os franceses mostraram que detestam as reformas, mas o preço a pagar pela sua ausência começa a ficar caro.