Título: Equilíbrio no sistema em desequilíbrio
Autor: Maria Clara R.M. do Prado
Fonte: Valor Econômico, 06/04/2006, Opinião, p. A15

O ex-ministro da Fazenda e embaixador Marcílio Marques Moreira fez a gentileza, há dias, de chamar a atenção da coluna para o artigo "Examining Global Imbalances" ("Examinando os Desequilíbrios Globais"), publicado na revista "Finance and Development", do FMI, na edição do trimestre de março deste ano, volume 43. O interesse no texto é movido pela curiosidade que economistas e analistas do mercado financeiro têm levantado nos últimos anos com relação ao mistério que ronda a espécie de quebra-cabeça instalado do sistema internacional. Desde o fim da Guerra Fria, o sistema avança sustentado em um único pilar dominante, os EUA. Mas, se o desequilíbrio é latente, conforme transparece no imenso déficit da conta-corrente americana, o que afinal tem contribuído para perpetuar o novo status quo em aparente equilíbrio? O texto tem como autores uma dupla de economistas que há pelo menos cinco anos tem se dedicado a estudar o comportamento dos ativos e passivos no mercado financeiro internacional: Philip Lane, professor da macroeconomia internacional e diretor do Instituto de Estudos para a Integração Internacional do Trinity College, na Universidade de Dublin, e Gian Maria Milesi-Ferretti, chefe de divisão do departamento de pesquisa do FMI. Sua mais recente pesquisa foi realizada com base em dados e informações envolvendo 140 países no período entre 1970 e 2004. Com ela, eles tentaram medir a exposição financeira dos países para com o resto do mundo, uma forma de conhecer a sustentabilidade externa de cada um. Também buscaram entender o grau de interdependência entre os países e suas vulnerabilidades através de informações sobre o tamanho e a composição dos portfólios internacionais. Os dados sobre ativos e passivos foram divididos em três grandes categorias: investimento em ações envolvendo o Investimento Estrangeiro Direto, estoque de reservas internacionais e dívida, que inclui títulos de renda fixa, além de outros instrumentos como empréstimos, depósitos e créditos de comércio. Daqui extraíram a "posição líquida externa" de cada país, que é a diferença entre o total de ativos externos e o total de passivos externos e cujo resultado representa a posição líquida credora ou devedora de um país com relação ao mundo. Algumas tendências genéricas foram identificadas com a pesquisa: 1) o crescimento significativo da integração financeira internacional, principalmente entre os países de economia mais avançada. Este comportamento foi acelerado a partir de meados dos anos 90; 2) o aumento acentuado dos desequilíbrios globais nos últimos anos, com a China e os países exportadores de petróleo tornando-se crescentemente grandes credores no sistema internacional, em boa parte contribuindo para financiar o passivo externo corrente dos EUA. Uma constatação, porém, chama a atenção dos autores: o fato da situação externa americana ter se mantido relativamente estável entre 2001 e 2004, depois da profunda deterioração ocorrida na posição líquida de seus ativos externos entre 1999 e 2001; e 3) a terceira e mais interessante tendência: os drásticos movimentos de recursos financeiros entre os países devido às diferenças de taxas de retorno entre ativos e passivos externos. Esses fluxos sobressaem pelo tamanho que passaram a ter no sistema. Estima-se que ativos e passivos externos representem mais de 100% do PIB de muitos países.

-------------------------------------------------------------------------------- Investidores americanos têm recebido maiores retornos pelas aplicações nos ativos externos do que os estrangeiros nas aplicações em ativos dos EUA --------------------------------------------------------------------------------

Com essa dimensão em mente, fica fácil entender a importância que credores e devedores passaram a dar ao diferencial de taxas de retorno. Lane e Milesi-Ferretti explicam: "se os ativos e passivos externos representam 100% do PIB, um diferencial de retorno do nível de dois pontos de porcentagem entre ativos e passivos tem o mesmo efeito na posição externa de um país de um superávit ou déficit comercial equivalente a 2% do PIB". E adiantam que aquelas diferenças de retorno podem surgir por vários motivos, incluindo a moeda em que ativos e passivos estão denominados ou a composição dos instrumentos financeiros que compõem a carteira de ativos e passivos. Chegam, então, ao caso específico do "hegemon" e a razão pela qual o crescente déficit em conta-corrente dos EUA não tem sido acompanhado por proporcional deterioração na posição líquida de seus ativos externos. O ponto crucial da charada está no fato de que, em média, os investidores americanos têm recebido maiores retornos pelas aplicações nos ativos externos do que receberam os investidores estrangeiros nos recursos aplicados em ativos americanos. Em 2004, a taxa de retorno real sobre os ativos externos dos EUA foi de cerca de 12%, em média, contra taxa em torno de 4%, em termos reais, que pagou sobre o passivo externo. As taxas de retorno consideradas incluem rendimentos de investimentos, tais como dividendos ou juros sobre títulos de renda fixa que são registrados na conta-corrente do balanço de pagamentos, além de ganhos ou perdas de capital originárias de flutuações ocorridas no valor dos ativos e dos passivos. O capital pode se valorizar com as alterações nos preços das ações, das taxas de juros ou das taxas de câmbio, e essas mudanças não são registradas na conta-corrente. Isso influencia a posição externa líquida de um país mesmo que seja tomador líquido zero de recursos no exterior. Boa parte da diferença é explicada pela composição dos ativos e dos passivos externos da economia americana: em 2004, a maior parte dos ativos tomava a forma de ações e investimento estrangeiro, enquanto que o passivo era basicamente formado por instrumentos de dívida. Além do efeito do ganho líquido no mercado acionário externo, os EUA se beneficiaram, entre 2002 e 2004, do efeito do enfraquecimento do dólar sobre seu passivo externo (denominado todo em dólar), do mesmo modo como tiram proveito do fortalecimento das demais moedas fortes em seu ativo externo. O aparente equilíbrio de um sistema em desequilíbrio latente ajuda a aliviar a situação da economia americana, mas não explica o motivo pelo qual os europeus se dispõem a continuar carregando ativos em dólar, cuja desvalorização lhes impõem nítida e pesada perda de capital.