Título: Mitos sobre a produção chinesa
Autor: Guy de Jonquieres
Fonte: Valor Econômico, 06/04/2006, Opinião, p. A15

Em meio a todos os gritos de protesto em Washington sobre o gigantesco déficit comercial com a China, um deles lembra um tema político especialmente estrondoso: que a concorrência desleal chinesa está devastando a indústria fabril dos EUA e "roubando empregos americanos". A afirmação é tão comum que já assumiu a condição de fato. Ela é, contudo, quase inteiramente falsa. Para começar, o desequilíbrio bilateral pode ser exagerado. Depois de eliminar as vastas discrepâncias entre as informações dos dois lados, a consultoria Oxford Economics conclui que a fatia da China girava em torno de 20% do déficit total de mercadorias dos Estados Unidos desde 1995. Isso indica que este déficit é resultado e também causa do crescimento dessa fatia. Jogar toda a culpa sobre a China seria incorreto, mesmo se a indústria dos Estados Unidos estivesse morrendo. Pela maioria das medições, porém, ela goza uma saúde vigorosa. Os EUA ainda são o maior país industrial, produzindo quase um quarto da produção mundial, assim como em 1994, ao passo que a fatia do Japão encolheu. Ajustada para refletir quedas regulares nos preços dos produtos industrializados na comparação com outros bens e serviços, a produção industrial dos EUA dobrou desde 1985 e sua fatia do PIB pouco mudou em meio século. É verdade, a maioria da produção provém de fábricas pertencentes a empresas não americanas, algumas das quais demitiram a produção nativa. Isso pode alimentar percepções populares de declínio nacional, especialmente porque fábricas novas na região rural evitam o velho cinturão de fábricas obsoletas. A nacionalidade da empresa, porém, é irrelevante no que tange ao bem-estar econômico geral, exceto na medida em que as plantas pertencentes a estrangeiros geralmente têm desempenho superior ao das empresas locais. O que dizer da China como "ladrão de empregos"? O emprego na indústria dos EUA está em declínio prolongado, assim como em outros países ricos. Isto se dá principalmente graças a impressionantes ganhos de produtividade. Caso não tivesse havido nenhum desde 1970, quase 40% de todos os postos de trabalho nos EUA estariam - teoricamente - na indústria, três vezes acima do nível atual. A comparação é inexpressiva, porém, pois ao manter-se inalterada teria levado os produtores industriais dos EUA a caírem no esquecimento em termos de concorrência. Certamente, a concorrência chinesa cobrou alguns postos de trabalho industriais dos EUA. Mas a Oxford Economics avalia as perdas de 2000 a 2010 em apenas 500 mil - não mais do que a força de trabalho dos EUA elimina semanalmente. O desaparecimento destes postos de trabalho é também em parte uma ilusão estatística. Muitos empregos no setor industrial estão na verdade no setor de serviços, como finanças e marketing, que geram retornos muito maiores. Enquanto as empresas desagregavam ou terceirizavam suas operações, as informações de emprego oficiais reposicionaram categorias de trabalhadores para o setor de serviços.

-------------------------------------------------------------------------------- A maior preocupação dos países ricos não é que a China possa seguir o mesmo caminho, mas que suas próprias economias parem de fazê-lo --------------------------------------------------------------------------------

Se o setor industrial dos EUA é mais vigoroso do que acredita a maioria dos americanos, a China representa um desafio ainda mais brando do que geralmente se supõe. Sua produção industrial ainda é menor do que a metade daquela dos EUA - e muitas de suas indústrias estão sofrendo um grave aperto nos lucros. Realmente, chamar a China de economia industrial seria uma definição inapropriada, Na verdade, ela é a maior linha de montagem final do mundo, com mínimo valor agregado local. Como mostra um relatório ("China: The Balance Sheet" - www.iie.com ) a ser publicado pelo Institute for International Economics e o Center for Strategic and International Studies, na média, dois terços do valor dos produtos chineses são importados - e muito mais em algumas indústrias. Além disso, as muito alardeadas exportações de "alta tecnologia" da China são uma proeza de classificação aduaneira: a maioria são produtos eletrônicos de margem baixa, como aparelhos de DVD. De acordo com Jonathan Woetzel da consultoria de gestão McKinsey, a China ainda está muito atrás dos EUA em setores de engenharia de precisão. Muitas exportações chinesas caras são de itens que já não são fabricados nos EUA ou que jamais foram produzidos lá. Uma extensa revalorização do yuan simplesmente deslocaria a produção chinesa a lugares de custo ainda menor alhures. Aumentos nos ainda baixos níveis de produtividade chineses terão um efeito semelhante, à medida que os maiores salários forem tornando a produção composta de mão-de-obra intensiva e de baixa capacitação cada vez menos competitiva. Ao mesmo tempo, mais atividades sofisticadas surgirão para substituí-la. Isto já aconteceu no setor siderúrgico, onde a capacidade da China explodiu nos anos recentes. Ela será repetida em breve no setor automobilístico, à medida que os investimentos fluírem na direção da produção local, dos componentes de menor custo de que a China necessita para exportar veículos rentavelmente em volume. Esta é uma perspectiva que deve infundir medo em Detroit. Mas o motivo principal não se deve ao potencial de as empresas automobilísticas chinesas poderem se transformar da noite para o dia em clones supercompetitivos da Toyota. Décadas de má administração e a incapacidade de produzir o que o mercado quer foi o que levou os fabricantes de carros dos EUA à beira do abismo. Não será preciso muito para derrubá-los. Avançar regularmente rumo a mercados mais caros é uma característica natural, realmente inevitável, do desenvolvimento econômico. A maior preocupação para os EUA - e para outros países ricos - não é que a China possa seguir o mesmo caminho, mas que suas próprias economias parem de fazê-lo. Não há nenhum motivo intrínseco para que isso aconteça e há poucos indícios disso por ora. Se realmente acontecer, porém, só terão a si mesmos para incriminar.