Título: Sobre os atos secretos do Senado
Autor: Filgueiras , Fernando
Fonte: Valor Econômico, 10/07/2009, Opinião, p. A10

Mais um escândalo vitima o Senado Federal por conta das delinquências praticadas por alguns homens públicos brasileiros. A sucessão de escândalos coloca em suspeição a própria funcionalidade desta instituição, que se exime de suas responsabilidades para entrar no jogo sujo das trocas de balcão e nos arranjos para adequar o jogo de poder aos ditames dos interesses privados.

Ao se sucederem os escândalos no Senado, pela abertura de seus segredos, cria-se a sensação de desconfiança que paira sobre nossa democracia, de maneira a tornar o próprio debate pouco democrático. Não se discute as questões institucionais envolvidas nos seguidos escândalos e nem mesmo se tem uma visão positiva a respeito do que pode ser aprimorado ou do que deve ser abandonado para reforçarmos uma ideia republicana de democracia. Preferimos o debate sobre as mazelas institucionais, criando uma situação de catarse coletiva pouco afeita ao esclarecimento.

Em primeiro lugar, é fundamental separar a instituição do Senado Federal das delinquências praticadas pelos seus representantes. As delinquências devem ser resolvidas na dimensão da justiça, em particular da justiça penal, devendo suas senhorias responder pelos atos praticados contra a administração pública. Outra coisa é buscarmos a preservação da instituição frente aos escândalos, sendo necessário uma discussão mais aprofundada sobre seu papel na sociedade democrática brasileira, realizando, para isso, uma discussão de fato pública sobre qualquer projeto de reforma. Em segundo lugar, é fundamental pensar a questão do segredo nas democracias, de maneira a contrastar com a própria noção de transparência, tão propalada no debate público contemporâneo.

A institucionalização do papel do Senado como instância de representação federativa, pela Constituição de 1988, tem o objetivo de fazer com que haja uma instância de deliberação de políticas na dimensão dos Estados, respeitando o processo de descentralização da administração pública e a própria noção do bicameralismo como um reforço da ideia de democracia. Ao contrário disso, quando os senadores vão ao varejo negociar cargos, prebendas e privilégios, contribuem para criar uma estrutura pouco eficiente em suas finalidades e pouco afeita a uma gestão pública democrática. É fundamental, na dimensão da Federação, uma instância de deliberação de políticas que venham a reduzir as desigualdades regionais e redistribuir recursos às regiões e estados mais carentes.

Ao se reproduzir essa desconfiança crescente em relação às instituições representativas, coloca-se em risco o papel constitucional do Senado e a própria democracia, porquanto não há, no debate público brasileiro, um projeto para reforçar a ideia de representação, mas apenas uma política do escândalo que assola as instituições políticas. O esgarçamento do mais recente projeto de reforma política demonstra a fraqueza das instituições representativas em nossa democracia. Em momento algum o Congresso apresentou à sociedade um projeto claro de reforma política que justificasse publicamente por que fazer um conjunto de mudanças nas regras institucionais. Ao contrário disso, apresentou um projeto de reforma no varejo das negociatas, sem um debate público mais profundo sobre a funcionalidade das instituições.

Quando os segredos do varejo se tornam públicos, contribui-se, portanto, para a crescente suspeição da sociedade em relação às instituições representativas, criando um ciclo vicioso em que, à sucessão de escândalos, não conseguimos uma resposta eficaz. O segredo tem essa característica, sendo comum na política das aristocracias, acostumadas aos conluios e às conspirações. Preservar o Senado, portanto, significa ampliar sua margem de publicidade, tornando-o uma caixa de ressonância da sociedade civil, em particular o lugar para a deliberação dos interesses federativos. Uma política do segredo, como faz o Senado, contribui para sua própria deslegitimação, fazendo com que ele se torne, literalmente, o espaço para a reprodução de mordomias as mais variadas.

O segredo, talvez ao contrário do que o senso comum pensa, pode ser democrático. Não o segredo em torno de maracutaias, mas atos secretos que venham a preservar a própria publicidade da atuação das instituições. É fundamental, dessa forma, debater quais devem ser os atos secretos realizados pelas instituições, com a finalidade de preservar o interesse público. Assim como a polícia, para investigar um eventual criminoso, necessita realizar sua ação em segredo, com o fim de preservar o interesse público, o Senado pode fazer uso de atos secretos para defender eventuais proposições normativas e evitar, por exemplo, a intervenção de lobbies e interesses escusos.

O erro do Senado foi fazer uso dos atos secretos para distribuir prebendas entre os confrades, não percebendo os sucessivos erros realizados pela sua burocracia. Os atos secretos são importantes em uma democracia para a preservação do interesse público. O que se exige é que os segredos de Estado tenham uma publicidade de segunda ordem. Ou seja, os atos são secretos mas, para que esse segredo atenda ao princípio democrático da publicidade, todos devem endossar que em algumas situações é válido o ato secreto como prática política. Nesse caso, o Senado daria uma contribuição importante à nossa democracia se debatesse publicamente quais devem ser os atos secretos e justificar, também publicamente, porque adotá-los. Inclusive os atos secretos do Executivo e do Judiciário.

Reforçar o debate público, portanto, significa transcender a catarse coletiva dos escândalos para uma visão positiva da democracia. Significa sair de uma política da transparência pura e simples para uma política da publicidade, em que o debate em torno de valores e normas democráticos seja construtivo para a consolidação da própria democracia.