Título: Mudanças climáticas e comércio nos EUA
Autor: Bonomo , Diego Zancan
Fonte: Valor Econômico, 27/07/2009, Opinião, p. A10

O momento para um diálogo direto é ideal, pois o Senado dos EUA é mais suscetível ao pleito dos parceiros comerciais

A Câmara dos Representantes dos Estados Unidos aprovou por estreita margem, em 26 de junho, o American Clean Energy and Security Act (Aces). O acrônimo do projeto de lei, que, em português, corresponde aos "ases" do baralho, por si só dá o tom da aposta feita pelo Partido Democrata e pela administração Obama. Se aprovado no Senado, o Aces poderá traduzir-se na legislação de maior impacto para a economia americana nas últimas décadas. Nesse contexto, cabe ao setor privado brasileiro acompanhar com atenção sua tramitação e, sobretudo, entender seu impacto para as exportações e os investimentos do país.

Embora taxado de "lei das mudanças climáticas", o projeto de lei é amplo. Duas das suas quatro principais seções estabelecem regras para profunda reforma da política energética dos Estados Unidos. A primeira detalha, de forma específica, ações de promoção da energia limpa e a segunda, programas voltados à eficiência energética. A terceira seção é a que contém as metas e parâmetros do novo regime doméstico de mitigação das mudanças climáticas. A quarta e última cria mecanismos de transição para a desejada "economia de energia limpa".

Há muitos aspectos do Aces que precisam ser melhor compreendidos e monitorados durante a tramitação do projeto de lei pelo Senado. No entanto, dois merecem atenção imediata dos empresários brasileiros: os subsídios previstos para as indústrias americanas intensivas em energia e expostas ao comércio; e os requisitos a serem impostos aos produtos importados pelos Estados Unidos, cujo efeito é o de uma "tarifa do carbono" cobrada na fronteira.

O novo regime doméstico de mitigação das mudanças climáticas será baseado no que se convencionou chamar de "cap and trade". O projeto de lei estabelece teto anual de emissões de gases de efeito estufa a partir de determinado ano-base e o reduz de forma progressiva até 2050, quando a meta é alcançar 83% de redução das emissões referentes ao ano de 2005. Ao mesmo tempo, autoriza o governo federal a distribuir ou a leiloar licenças de emissão que em fase posterior poderão ser comercializadas pelas empresas, criando assim o mercado de créditos de carbono.

Os setores industrial e de geração e distribuição de energia são os dois principais focos das novas regras - o que não ocorre com a agricultura e boa parte da indústria de serviços. No entanto, a versão aprovada pela Câmara reserva até 15% das licenças de emissão para distribuição gratuita a certas indústrias americanas caracterizadas como "intensivas em energia" e "expostas ao comércio". Os dois critérios são definidos por fórmulas matemáticas. Algumas são de difícil cálculo, pois envolvem novos conceitos - como o de "fatores de carbono" - e aparentam possuir certo viés favorável à proteção dos setores mais poluentes.

De qualquer modo, o subsídio governamental na forma de licenças de emissão previsto pelo Aces parte da premissa de que o custo de adaptação para essas indústrias é alto, decorrente dos esperados aumentos no preço da energia doméstica. Além disso, a exposição das empresas desses setores ao comércio internacional acentuaria eventual desequilíbrio competitivo já ocasiado pelo aumento de custos. Assim, para evitar o deslocamento de plantas industriais dos Estados Unidos para outros países em que não há regime equivalente - e portanto custo adicional - e para salvaguardar a indústria doméstica da "concorrência desleal" dos estrangeiros que não estão cobertos pelas mesmas regras, o projeto de lei autoriza a concessão do subsídio.

Na verdade, o Aces vai além, ao condicionar a criação de uma barreira na fronteira à negociação do regime multilateral de mitigação e adaptação às mudanças climáticas pós-Quioto. Se até 2018 não estiver em vigor acordo multilateral sobre a matéria, o presidente dos Estados Unidos será obrigado, a partir de 2020, a exigir dos importadores a compra de licenças de emissão que farão parte de uma reserva internacional. Parece natural esperar que essa exigência, cujo efeito é o de uma tarifa de importação, seja revertida em custos para os exportadores. Mesmo se o presidente alegar que tal sistema não condiz com o interesse nacional do país, sua decisão precisará ser aprovada pelo Congresso. Além disso, as exceções para determinados setores dependem de requisitos a serem cumpridos pelo país exportador e estão atreladas ao padrão de consumo dos Estados Unidos.

Esse sistema "siamês" de concessão de subsídio e potencial criação de barreira às importações apresenta dois riscos para o setor privado brasileiro. O primeiro e mais imediato é seu efeito sobre as exportações para o mercado americano e de terceiros países. A depender da dosagem do subsídio, seu efeito pode ultrapassar o limite necessário à adaptação do parque industrial doméstico e reverter-se em instrumento de ampliação artificial e desleal da competitividade das empresas dos Estados Unidos. Do mesmo modo, o requisito de compra de licenças de emissão na importação pode, na prática, frear as exportações brasileiras para esse país. Vale notar que o projeto aprovado pela Câmara não restringe a potencial nova barreira apenas a produtos primários, como previsto em versão anterior. Todos os setores industriais, inclusive parcelas do agronegócio e da atividade mineradora, são potenciais alvos. Os primeiros candidatos são empresas brasileiras produtoras de aço, alumínio, cimento, químicos, vidro, papel e celulose, cerâmica industrial, fertilizantes, aglomerados de minério de ferro e cobre, entre outros produtos.

O segundo risco é aquele que a diplomacia brasileira costuma chamar de "sistêmico", isto é, o potencial conflito na relação entre as regras multilaterais nas áreas ambiental e comercial. Hoje, há pouca clareza sobre a legalidade das medidas previstas no Aces à luz dos acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC). As opiniões são variadas, mas número significativo de especialistas considera os subsídios e a eventual "tarifa do carbono" ilegais e passíveis de contestação no sistema de solução de controvérsias da organização. Antevendo a situação, os congressistas americanos embutiram no projeto uma série de objetivos negociadores que os Estados Unidos deverão perseguir - emulando, assim, o mandato negociador existente na área dos acordos comerciais. Em linguagem cifrada, passam a exigir da diplomacia americana a tentativa de legalizar os mecanismos do projeto de lei no acordo pós-Quioto.

Esses riscos não são abstratos nem desprezíveis. O setor privado brasileiro deve, desde já, engajar-se no processo legislativo americano para evitá-los. O momento para um diálogo direto com o Congresso é ideal, pois o Senado dos Estados Unidos é mais suscetível às considerações geopolíticas e de política externa, assim como ao pleito dos parceiros comerciais do país. Ainda há tempo de se evitar um jogo de cartas marcadas.

Diego Zancan Bonomo é diretor executivo da Brazil Industries Coalition (BIC), entidade de representação de empresas e associações empresariais brasileiras em Washington DC, Estados Unidos. E-mail: diego@bic-us.org.