Título: Atual cenário tem mais custos que riscos
Autor: Lamucci, Sergio
Fonte: Valor Econômico, 28/07/2009, Especial, p. A14
Fernando Montero: Os ortodoxos do mundo mandam todos gastarem, principalmente os emergentes. A exceção foi a OCDE, que lembrou os desafios de longo prazo, provocando um rebuliço no governo, que parece só querer ouvir as recomendações que servem para a China, país que superinveste e poupa metade do PIB. O Primeiro Mundo mais pobre e menos gastador vê nos emergentes a esperança de demanda. Na China, isso passa por redirecionar o crescimento para o consumo interno. Para nós, a fórmula de mais fiscal e mais consumo, financiado com mais déficit externo, é um absurdo. No mundo pós-crise, onde os EUA têm que poupar mais e a China, consumir mais, o Brasil precisa ainda investir mais.
Valor: Há espaço para mais aumentos de gastos ou redução de impostos neste ano?
Montero: Há espaço para aumento de gastos, mas evidentemente não para toda a elevação de despesas programadas. O Planejamento precisa de cada vez mais acrobacias para não contingenciar despesas. O papel das desonerações emergenciais já foi feito, uma vez que o pior fica para trás. Agora é programar a saída dos incentivos, em especial sobre o consumo, conforme a economia permita. Desonerações mais "estruturais" ficaram à mercê da arrecadação.
Valor: O governo reduziu a meta de superávit primário de 3,8% para 2,5% do PIB neste ano. É factível?
Montero: Neste ano a meta se cumpre. A questão é o que haverá nessa meta, transformada numa peneira contábil. O governo pretende não recorrer ao Fundo Soberano neste ano. Acho difícil. Eu trabalho com um primário efetivo de 1,6% do PIB que, com a ajuda da dedução do PPI, de 0,5% do PIB, supondo que consigam executar os investimentos, e do aporte de um pedaço do FS, de 0,4% do PIB, permitirão chegar aos 2,5% do PIB.
Valor: O governo excluiu os investimentos da Petrobras do superávit primário e ampliou o Projeto Piloto de Investimentos (PPI) [obras prioritárias de infraestrutura] de 0,5% para 0,65% do PIB. Como o sr. avalia essas mudanças?
Montero: Sobre a Petrobras, estava na hora. Contabilizamos investimentos como gasto primário e venda de capital público como ajuste patrimonial. Nem o Brasil nem a Petrobras merecem essa amarra. Vale dizer que essa decisão em particular não facilita em nada a dinâmica de sua dívida: com a exclusão da Petrobras, credora líquida e superavitária, a relação dívida/PIB aumenta e o superávit primário diminui. No caso do PPI, as motivações são menos claras. A ideia é preservar um espaço para investimentos públicos, que seriam turbinados no segundo mandato com o lançamento do PAC. Mas, comparando os cinco primeiros meses de 2009 e de 2006, os investimentos aumentaram apenas R$ 4,9 bilhões, contra R$ 63,7 bilhões em todos os demais gastos públicos. Não é um quadro de escassez de recursos para investir.
Valor: A atividade econômica reagiu melhor do que se esperava. Qual o papel da política fiscal para a variação do PIB neste ano?
Montero: Quando uma despesa que ocupa um quinto da economia cresce 14,4% acima do crescimento nominal do PIB, ela é sentida. Some isso a rendimentos do trabalho que, ocupando um terço do PIB, cresceu 4,9% reais no primeiro semestre, e você entende a resistência do consumo na crise.
Valor: O governo reduziu fortemente o superávit primário e não houve reações significativas do mercado. A questão da solvência fiscal do país saiu de cena?
Montero: Lá fora, famílias, empresas e bancos estão quebrados e a discussão é se isso acabará por quebrar governos também. O Brasil, por contraste, virou um santuário. O mercado interno está acostumado a tratar a questão fiscal do ponto de vista da solvência, em que basta assumir algumas hipóteses razoáveis de crescimento e de juros para redimensionar os riscos. O meu próprio cenário otimista da recuperação ameniza o problema da dinâmica da dívida. O problema fiscal não é do mundo nem dos mercados, mas dos brasileiros.
Valor: O governo aumentou fortemente os gastos correntes, acelerou os investimentos e concedeu desonerações tributárias. Isso caracteriza uma política fiscal anticíclica bem executada? Por quê?
Montero: A política fiscal expansionista estava contratada; a crise a tornou anticíclica. Do lado dos gastos, foi o ciclo que se adequou à política fiscal, e não o contrário. São gastos correntes de caráter permanente. Não se puxa a economia da recessão aumentando salários do funcionalismo em acordos escalonados por anos. Neste ano, a folha aumentou R$ 11,2 bilhões até maio. Isso representa R$ 2,2 bilhões mensais, distribuídos entre 2 milhões de ativos e inativos, R$ 1.100 mensais per capita. Isso não é política anticíclica. Do lado das receitas, o cenário é bastante mais construtivo: houve desonerações anticíclicas, transitórias, reais e eficazes. O governo foi rápido e eficiente, promovendo um misto de incentivos, antecipação de consumo e puro marketing que funcionou e deve ser fácil de reverter.
Valor: Em que medida a política fiscal atual restringe as perspectivas futuras de crescimento do país?
Montero: O desmando nos gastos representará um risco de solvência se comprometer, drástica e duradouramente, o crescimento sustentado com juros menores. Antes de quebrar o Estado, isso quebra a economia. O problema não é a trajetória da dívida, mas o "crowding-out" na economia [gastos públicos ocupando espaço do setor privado]. O Brasil, que entrou na crise com uma taxa de juros excepcional e uma situação fiscal razoável, poderia sair dela com uma taxa de juros razoável e um fiscal excepcional. É só pensar numa taxa de juros que, sem a perna gastadora, puxasse e sustentasse depois a retomada, e o alívio financeiro que esses juros menores e um dólar mais caro trariam às contas fiscais. No médio e longo prazo, menos juros e mais câmbio promovem melhor o investimento e o crescimento, sendo melhores também para a a sustentabilidade da dívida. Do jeito que está, o Brasil entra na crise com uma das taxas de juros mais altas do mundo e sairá com uma das mais altas do mundo. A qualidade fiscal piorará, mesmo que menos que no resto do mundo, com seu impacto mais sério centrado nas condições de crescimento de longo prazo, mesmo que melhores que no resto do mundo.
Valor: O próximo governo receberá um país melhor ou pior em termos fiscais do que recebeu Lula?
Montero: Lula recebeu uma crise cambial que jogou a dívida/PIB numa trajetória perigosa, com câmbio e juros e disparando, além de recessão, com receitas despencando. Do ponto de vista da dinâmica da dívida, não há comparação possível: os juros estão mais baixos, a economia retomará um crescimento mais sustentável, a dívida é menor. O Brasil avançou muito. O próximo governo terá mais restrições orçamentárias e gastos engessados, sim, mas a retomada do crescimento e da arrecadação ajudará. O atual cenário fiscal tem mais custos que riscos. (SL)