Título: Gastos brasileiros são pró-cíclicos ou anticíclicos?
Autor: Manoe , Alexandre
Fonte: Valor Econômico, 28/07/2009, Opinião, p. A12

Uma mudança institucional é necessária para incentivar os governos a se comportarem de maneira anticíclica

Há uma considerável gama de estudos empíricos que analisam como os componentes da despesa pública de países da América Latina respondem a choques no produto, se de forma pró-cíclica ou anticíclica. Em geral, ao utilizar diversas categorias de gasto e períodos amostrais distintos, os autores desses estudos concluem que o gasto público se comporta de maneira pró-cíclica. A título de ilustração, ver Gavin & Perotti (1997); Kaminsky, Reinhart & Végh, (2004); Alesina & Tabellini (2005); Ellery-Jr & Gomes (2005); Akitoby et.alli. (2006).

A literatura justifica o caráter pró-cíclico da política fiscal em países em desenvolvimento sob pelo menos dois argumentos. Uma primeira razão estaria relacionada a restrições de liquidez enfrentadas por essas economias. Nos períodos de expansão, a oferta de crédito é mais abundante e os governos poderiam tomar empréstimos com maior facilidade e com isso elevar os dispêndios públicos. Por sua vez, nas recessões, a escassez da oferta de crédito limita o crescimento dos gastos públicos (Gavin & Perotti (1997) e Kaminsky, Reinhart & Vegh (2004)).

Uma segunda linha de argumentação reside na literatura de economia política. Lane & Tornell (1998), por exemplo, defendem a existência do "efeito voracidade", ou seja, nos períodos de expansão, os recursos públicos são maiores e a disputa por uma parcela excedente desses recursos se intensifica, o que obriga os governos a acomodarem as demandas dos diversos grupos por meio da expansão dos gastos.

Diante dessa fatídica tendência de se encontrar gastos pró-cíclicos nos países em desenvolvimento, decidimos promover uma análise na receita e na despesa primária (exclui a parte financeira do orçamento público, tais como juros e correções monetárias), no investimento e no consumo do governo federal brasileiro, de modo a verificar se esses itens se comportaram de maneira pró ou anticíclica em relação ao PIB per capita do Brasil, no período 1901 a 2006. De fato, no âmbito da esfera federal brasileira, investigamos empiricamente qual é a relação entre esses componentes do orçamento público e o PIB per capita, durante o Século XX e limiar do Século XXI.

Nossa pesquisa foi eminentemente descritiva e exploratória (de dados) do ponto de vista econométrico, que formalmente não testou qualquer modelo teórico. Destaque-se que, além dos resultados aqui expostos, outras análises e referências bibliográficas poderão ser encontradas no Texto de Discussão (TD) a ser publicado pelo Ipea, sob o título "Variáveis Fiscais e PIB Per Capita no Brasil: Relações Vigentes entre 1901 e 2006".

Nesse TD, em particular, investigamos se a relação encontrada entre as variáveis fiscais aludidas e o PIB per capita altera-se ao longo do tempo. Nesse sentido, estimamos modelos autorregressivos univariados e multivariados com a técnica Markov Switching. Esta técnica permite estimar modelos em que as variáveis se relacionam de maneira diferente em distintos regimes fiscais, de forma que os parâmetros desses modelos mudam de acordo com o regime em vigor. Assim, esses modelos levam em consideração possíveis relações de não-linearidades, já que a imposição de linearidade entre cada variável investigada e seus valores passados e os valores defasados das outras variáveis selecionadas é feita apenas em cada regime de maneira separada, de modo que os dados descrevem o comportamento entre as variáveis de uma forma mais flexível. Ademais, destaque-se que questões de endogeneidade ou causalidade reversa entre as variáveis são contempladas quando se utiliza essa técnica.

Assim, de acordo com os resultados encontrados em nossa pesquisa, pelo menos três considerações podem ser feitas.

Primeiro, observando-se as médias das taxas reais de crescimento auferidas por meio dos modelos estimados, pode-se sugerir que o governo federal tende a se comportar de forma perdulária. De fato, nos períodos em que os regimes fiscais se mostraram significativos do ponto de vista estatístico, enquanto a taxa real de crescimento das despesas primárias crescia a uma média de 7,7% a.a., o PIB per capita crescia em média 5,09% a.a. Em outras palavras, no Século XX e limiar do Século XXI, em média, os gastos do governo federal cresceram em uma proporção maior que o aumento de riqueza da sociedade.

Segundo, no Brasil, ao longo do período em análise, observa-se um único regime fiscal de ciclicalidade, que é o regime pró-cíclico - aumento (diminuição) da renda per capita leva a aumento (diminuição) da despesa - entre a despesa primária e o PIB per capita, datado em diversos períodos do século passado, o que corrobora os resultados encontrados em diversos estudos empíricos para a América Latina, conforme mencionado no início deste artigo.

Terceiro, os resultados sugerem que um aumento de 1% na taxa real de crescimento da despesa primária do governo federal no ano anterior implica diminuição de aproximadamente 2,7% no crescimento da taxa real de crescimento do PIB per capita. Portanto, como se evidencia, em relação à ciclicalidade, concluímos que os gastos primários do governo federal se comportaram de maneira pró-cíclica em relação ao PIB per capita, no Século XX e no limiar do Século XXI.

Dito isso, em tempos de crise e muitas discussões fúteis, cabe concluir destacando ao menos uma reflexão que inferimos de nossa pesquisa. Será que adianta discutir se a política fiscal do governo "A" ou "B" é pró-cíclica ou anticíclica? Em outras palavras, será que as raízes da natureza pró-cíclica de nossos gastos estão em puras escolhas do Poder Executivo?

Enfim, de maneira geral, cremos que, no Brasil, no âmbito do governo federal, enquanto não houver mudanças legais (institucionais) que criem incentivos para que os governos se comportem de maneira anticíclica, a diferença da política fiscal de um governo "A" para um governo "B" residirá apenas na escolha dos premiados, de modo que as despesas primárias do governo federal tenderão naturalmente a se comportar de maneira procíclica.

Alexandre Manoel Angelo da Silva é pesquisador do Ipea.

Angelo José Mont´Alverne Duarte é analista do Bacen cedido ao Ministério da Fazenda.