Título: Ameaçados de perder tudo
Autor: Vaz, Lúcio
Fonte: Correio Braziliense, 07/06/2010, Brasil, p. 8

Cerca de 400 produtores do assentamento São Vicente, em Flores de Goiás, foram notificados. Ou pagam suas dívidas ou seus bens irão a leilão

O resultado de 11 anos de trabalho está em cima da mesa do presidente da Associação dos Miniprodutores do Assentamento São Vicente, em Flores de Goiás (GO). São centenas de avisos de cobrança da Procuradoria da Fazenda Nacional. Ou eles pagam suas dívidas, entre R$ 9 mil e R$ 18 mil cada um, ou seus bens irão a leilão. Na maioria dos casos, os bens são porcos, galinhas e alguns carros velhos. Cerca de 400 das 539 famílias assentadas foram notificadas, relata a associação. Iniciado em 1998, o projeto teria irrigação em três anos. Mas a água não chegou até hoje. Muitos estão vendendo o lote. Pelo menos 200 já desistiram do assentamento. A inadimplência atinge quase 80% dos agricultores.

Com pouca informação, eles afirmam que o Banco do Brasil vai tomar as suas terras. Primeiro, o dinheiro não é do banco, que apenas opera os créditos concedidos pela União. Segundo, eles não têm a posse da terra, que ainda pertence à União. No máximo, ficarão inscritos na Dívida Ativa. Será ainda mais difícil para eles entender o que isso significa. Na prática, não poderão tomar outros empréstimos bancários. A dívida(1) resultou de recursos concedidos pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) para investimento e custeio, dentro do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf).

O programa vai bem. Segundo informa o MDA, o percentual de inadimplência dos R$ 12 bilhões investidos no ano passado ficou em 3,1%. Isso é dinheiro do Tesouro Nacional. Nos empréstimos feitos com risco para o Banco do Brasil, a inadimplência também é considerada baixa. A carteira de crédito do banco contabilizou R$ 64 bilhões em março de 2010. Esse é o dinheiro que está emprestado para a agricultura. Os pequenos produtores tomaram R$ 16 bilhões e deixaram de pagar (ou prorrogaram o prazo) R$ 1 bilhão. Isso representa 6,2% do total. Bem menos do que no caso dos médios e grandes produtores. Eles tomaram R$ 32 bilhões e rolaram R$ 10 bilhões (31% do total). Mas isso é o que está vencido e não foi pago. O que foi contabilizado como prejuízo do banco somou R$ 570 milhões no primeiro trimestre do ano.

O assentamento São Vicente vai mal. Ali, lotes são vendidos, de forma ilegal, por valores que variam de R$ 5 mil a R$ 15 mil. O presidente da Associação de Produtores Rurais, Audrey Galvão, confirma a prática: ¿Muitos venderam o lote. É crime, todos sabem que é, mas a família não tem mais como produzir. É uma forma de socorro¿. Há vários lotes usados como chácaras de fins de semana por moradores de Flores de Goiás ou mesmo Brasília.

Falta água O projeto de irrigação Flores de Goiás tem orçamento de R$ 650 milhões. Seriam construídas 10 barragens ao longo de 100km. Passados 11 anos, está pronta somente a primeira etapa do projeto. São beneficiados diretamente apenas dois fazendeiros, que têm água de graça para irrigar mil hectares. Outros 30 fazendeiros aproveitam a regularização da vazão do rio Paranã para bombear água para mais 6 mil hectares. O presidente da associação de produtores, Audrey Galvão, o Careca, tenta justificar o fracasso do assentamento.

¿Entregaram um recurso para formação de pasto, cercas, barragem e para comprar algumas cabeças de animais. Só que eles (assentados) venderam algumas cabeças para suprir a necessidade. Depois, com a seca e a falta d¿água, o gado morreu. Hoje, estamos recebendo uma carta do Ministério da Fazenda avisando que, se não negociar, vão penhorar bens. E nós aqui não temos nada, nem o documento de terra. Precisamos de alguma ajuda porque desse jeito não tem como sobreviver¿, discursa o líder do assentamento.

Ele reclama da irrigação que não chegou: ¿Os grandes latifundiários já tem água. Agora, os verdadeiros produtores rurais não têm. Se tivesse aqui uma barragem, um canal de irrigação, nós estávamos produzindo. A lavoura, no ano passado, não deu nada. E é proibido o assentado sair para trabalhar. Se sair daqui, o Incra toma a parcela dele¿.

Valdemar Bissotto, 73 anos, há 14 anos no assentamento, faz quase um pedido: ¿Tem que falar para o Lula perdoar a nossa dívida. Ou dar muitos anos de prazo para nós pagar. Nós não queremos de graça, nós queremos um prazo¿. Jair da Silva Santos, 42 anos, é o mais exaltado: ¿O Incra quer que a gente fique aqui dentro, mas não dá recursos nem projeto pra gente. Se tivesse um projeto de produção de leite, uma irrigação, ninguém saía para trabalhar lá fora. Mas ninguém é boi pra comer capim¿.

Gilberto dos Santos, 70 anos, investiu tudo numa pocilga. ¿Comprei porco. Tinha 200 metros de mangueira. Teve um incêndio e perdi 180 porcos. Nunca tive condições de pagar o banco. Hoje, estou comendo a aposentadoria.¿ Joaquim Calazans, 73 anos, procurou diversificar mais a produção. Ele mostra o que ainda mantém: porcos, galinhas, um quintal sortido e uns pés de mandioca. ¿Nós compramos aquilo que o Incra determinou. Fiz cerca, formei pasto, criei porco, criei galinha. As terras estão aí, os animais, a carroça. Só que eu adoeci e não pude pagar nada¿, lamenta. Ele faz coro ao citar o maior problema no assentamento: ¿O nosso maior problema aqui é a água. Dia tem e dia não tem. Toda seca morre as criação (sic) por falta de água, falta de projeto. A barragem eles prometem desde que chegamos aqui¿.

1 - Risco da União Os assentados de São Vicente tomaram crédito com risco do Tesouro Nacional. São os chamados Pronaf A, uma operação de investimento, e o Pronaf A/C, que são operações de custeio. São pequenos produtores familiares localizados num assentamento. Esse crédito é do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). O Banco do Brasil libera o recurso e depois recebe o pagamento quando vence prazo do empréstimo. Passou o prazo sem o pagamento, o banco informa o MDA que a dívida está vencida. O ministério passa para a Procuradoria da Fazenda, que faz a inscrição na Dívida Ativa.

Aluguel de pasto é a única renda

O assentamento Gibão, em Flores de Goiás (GO), foi implantado há seis meses, mas ainda não é produtivo. Instalados em barracas de lona, os pequenos agricultores criam galinhas e pescam nos riachos e nas lagoas próximas. Sobrevivem graças à cesta básica fornecida pelo governo. O campo está ocupado com cerca de 700 cabeças de gado, mas só algumas são deles. O pasto foi arrendado para fazendeiros da região. O aluguel de pasto e a venda de lotes da reforma agrária são ilegais, mas tornaram-se uma realidade nos assentamentos do Distrito Federal e do Entorno(1). Há cerca de 10 dias, o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) determinou a retirada de cerca de 900 cabeças de gado do assentamento Fazenda Conceição, em Alvorada do Oeste (GO).

Os trabalhadores assentados no Gibão também tiveram que pagar uma falsa ¿taxa de inscrição¿ no Incra, com valores entre R$ 300 (para quem veio de fora) e R$ 150 (para quem era dos arredores). Tanto em relação ao aluguel de gado quanto à cobrança dessa taxa, o dinheiro pode ter ficado com atravessadores, lideranças que assumem o controle dos acampamentos e, depois, dos assentamentos. O superintendente do Incra/DF, Marco Aurélio da Rocha, afirma que está promovendo uma ofensiva para combater o arrendamento de terras e a venda de lotes. ¿Isso é expressamente proibido. A superintendência vai agir com mais rigor agora. Recebemos várias denúncias e estamos indo a essas localidades, acompanhados da Polícia Federal, para que cessem imediatamente esses procedimentos¿.

O Correio registrou, na última terça-feira, a presença de centenas de cabeças de gado no Gibão. Diante da constatação do fato, a coordenadora do assentamento, Raimunda Nunes, tentou justificar a irregularidade. ¿A gente aluga o pasto. O dinheiro é que paga a energia (elétrica)¿. Eles cobram R$ 7 por cabeça. Questionada se é permitido o arrendamento, respondeu, confusa: ¿Não¿ assim, quando a gente chegou aqui, já tinha muito pasto. Aí, para rebaixar, entramos num acordo para alugar¿. Ela afirmou que o Incra teria permitido o aluguel. ¿Temos todos os comprovantes lá na mão do Incra. A gente leva todos os documentos, os comprovantezinhos.¿ Disse que tiveram que fazer isso porque ainda não produzem nada.

Federações Segundo denúncia de assentados, o dinheiro da ¿taxa de inscrição¿ teria sido entregue a um representante da Federação dos Trabalhadores da Agricultura no DF e Entorno (Fetadfe). Raimunda disse que não foi bem assim. ¿Isso aqui não existe. Existiu. No início, era o Dedé que se encontrava aqui dentro. Ele cobrava do pessoal¿. Ela informou até os valores: ¿Ele cobrava R$ 300 do pessoal de fora. O pessoal daqui do arredor (sic) era R$ 150. A gente soube e tirou o Dedé daqui. Agora não é cobrado nada¿. Ela disse que o representante da federação agora é José Antônio Assis. Não soube informar o nome de Dedé.

O presidente da Fetadfe, Mário Benedito, disse que reprova o arrendamento de pasto, mas tenta justificar a medida, num discurso bastante dúbio. ¿Não quero defender o meu dirigente (Assis). É claro que não é correto isso. Mas, se estiver revertendo para a comunidade¿ A Raimunda me disse que eles compram leite, matam duas vacas por mês. Errado é, mas, pelo menos, não está indo para o bolso de um indivíduo. Se o dinheiro é revertido para o coletivo, o mal não é tão grande. Mas eu sei que é errado¿. Ele procurou livrar a federação de qualquer responsabilidade: ¿Como eles se organizam é uma questão interna¿.

Benedito fez acusações contra Dedé e contou como surgem alguns assentamentos: ¿Tem vários movimentos. A gente descobre uma fazenda improdutiva e pede para o Incra fazer vistoria. Outro movimento também pode fazer o pedido. Para o Incra, o critério é quem faz o pedido primeiro. Esse Dedé tem um movimento que não existe. Ele quis ficar lá dentro. Brigou com o Zé Antônio. Ele ficou uns três meses tentando organizar o movimento, mas o Incra foi lá e tirou ele¿. A Fetadfe teria a liderança de 38 assentamentos no DF, com cerca de 6 mil famílias assentadas, afirmou Benedito. Ele informou que acompanhou o Incra em outros locais onde havia aluguel de pasto. ¿Na fazenda Conceição, alugavam o pasto e não repassavam nada para a comunidade¿, comentou.

1 - O tamanho da reforma Existem 168 assentamentos no Distrito Federal no Entorno, incluindo municípios do Nordeste de Goiás e Norte de Minas. Eles ocupam uma área de 458 mil hectares, com capacidade para instalação de 14.125 famílias, mas o total é de 12.480 assentadas. Desses projetos, apenas 106 são titulados. Os assentados não têm pressa em garantir a titulação, por que, a partir desse momento, eles deixam de receber recursos previstos no programa de reforma agrária.