Título: cego , Voo
Autor: Brandão , Francisco Soares
Fonte: Valor Econômico, 05/08/2009, Opinião, p. A10

É importante que o crescimento do mercado de aviação comercial seja acompanhado por avanços na transparência

A recente sucessão de desastres aéreos levanta uma questão bem simples: o quanto os dezenas de milhões de passageiros que embarcam em voos comerciais todos os dias, em todo o mundo, estão informados sobre os aviões e companhias nos quais viajam?

O que eles sabem sobre a data da última manutenção do avião? O que sabem sobre o próprio avião? Quando a aeronave foi fabricada, há quanto tempo está voando, quem é responsável por certificar sua segurança? Qual o histórico de acidentes daquela empresa aérea? Ela cumpre os padrões internacionais de segurança e manutenção?

Viajante assíduo, embarquei nesta reflexão a partir de algumas considerações bem simples. Constato, por exemplo, que a exigência de transparência e "cobrabilidade" (já que não existe equivalente preciso, em português, para accountabillity) estende-se hoje por muitas áreas de nossas atividades cotidianas.

Toda a dona de casa, por exemplo, está atenta para os prazos de validade dos produtos que serve à sua família. E as empresas são obrigadas a colocar não apenas as datas de vencimento, mas também toda uma lista de ingredientes que compõem o alimento. E há ainda alertas específicos, lembrando ao consumidor, por exemplo, se o alimento tem ingredientes específicos, como glúten.

Em outras frentes - na de vestuário, por exemplo - as etiquetas explicitam as matérias primas utilizadas, a origem da produção e assim por diante. E os fabricantes de automóveis devem atender a várias legislações, informando antecipadamente ao comprador o grau de poluentes produzido, o consumo médio de combustível etc. Além disso, fazem sempre questão de destacar os atributos de segurança de seus novos modelos, utilizando a característica como um diferencial competitivo no mercado.

Trata-se de uma evolução importante de nossa sociedade nas últimas décadas. Hoje, dos políticos, dos governantes, das empresas e de seus executivos espera-se cada vez mais que atuem dentro de parâmetros de clareza e propriedade capazes de manter a opinião pública e os consumidores não apenas informados, mas cientes, com antecipação, das vinculações e interesses de todas as partes.

Em outras palavras, trata-se da questão da rastreabilidade, hoje tão em voga quando se trata de saber, por exemplo, se a madeira utilizada num móvel é certificada; ou se o par de tênis que usamos foi feito com mão de obra legal. Ou, ainda, se o alimento em nossa mesa obedece a certos preceitos sanitários ou ambientais.

Volto à nossa viagem de avião e pergunto: por que não podemos ter, todas as vezes que entramos numa aeronave, certas informações básicas sobre o aparelho no qual viajaremos? Por que não podemos ter, de forma antecipada, acesso a um ranking de empresas mais seguras, certificadas de forma independente?

Neste cadastro de saúde operacional, que poderia estar disponível para todos na Internet, o passageiro encontraria descrição das frotas das diversas companhias, com dados sobre a idade dos equipamentos, periodicidade da manutenção, incidentes ou acidentes relacionados aos aparelhos. A avaliação deste conjunto de quesitos poderia ser consolidada numa nota, como as que as classificadoras de risco atribuem atualmente às instituições financeiras. E quando do seu embarque, o passageiro também teria, de forma visível, um sumário das informações de segurança mais relevantes relacionadas àquela aeronave.

Em acidentes recentes, principalmente os envolvendo empresas regionais ou baseadas em mercados menos organizados e desenvolvidos, levantou-se de imediato a questão da falta de manutenção periódica dos aviões envolvidos. São empresas que cobram menos, por que investem menos, tanto na aquisição quanto na manutenção de seus equipamentos. Em um dos casos registrados nos últimos meses, a aeronave acidentada estava até proibida de pousar em aeroportos da Europa.

O sistema claramente beneficiaria as empresas que mais investem em manutenção e na redução da idade média de suas aeronaves. Permitiria a elas agregar os conceitos de segurança e responsabilidade à sua reputação. Aquelas companhias que investem de forma correta, consistente e que aparecerão no ranking de forma positiva teriam até condições de adicionar um valor extra às suas tarifas, apropriando-se das vantagens deste posicionamento.

É fato reconhecido que as principais companhias aéreas brasileiras trabalham dentro de padrões internacionais e que seus retrospectos de segurança são semelhantes aos dos melhores operadores internacionais. É importante, contudo, que o crescimento do mercado - e a chegada de uma variedade de empresas regionais ou de baixo custo - seja acompanhado por avanços continuados na transparência e no acesso à informação por parte dos passageiros.

Hoje a situação é a mesma em todo o mundo: viajamos no escuro, sem as informações básicas para formar um juízo de valor sobre os riscos de nossa viagem. O ponto de partida do bem-estar e conforto de quem viaja pela mão dos outros é a informação clara sobre o meio que se usará para levá-lo ao seu destino. Transparência, neste caso, nunca é demais.

Francisco Soares Brandão é empresário.