Título: Quem ganha com a estabilidade das regras?
Autor: Godoy , Paulo
Fonte: Valor Econômico, 10/08/2009, Opinião, p. A10

É preciso ponderar diversos fatores que envolvem custos e riscos e são carregados nas tarifas dos serviços

O Brasil demorou muitos anos para construir um ambiente de negócios caracterizado pela estabilidade econômica e regulatória e pelo cumprimento dos contratos. É uma conquista recente, sedimentada aos poucos ao longo dos últimos 15 anos. Quanto maior a previsibilidade e a crença de que os acordos serão respeitados, maior é a atratividade de um país para negócios e investimentos e menores são os custos. Tudo isso beneficia a população e impele as nações para um caminho de desenvolvimento econômico e social sustentável no longo prazo.

Essa conquista, infelizmente, não está completamente livre de ameaças. Em circunstâncias específicas, ainda é comum ver autoridades públicas, lideranças empresariais ou movimentos sociais caírem na tentação dos discursos inflamados contra os preços dos serviços públicos sem levar em conta o histórico de sua formação e todos os fatores que os compõem, inclusive a carga tributária incidente sobre os mesmos.

O combustível para esses arroubos é a visibilidade e o impacto social desses serviços na opinião pública. Independentemente da falsa ou justa pretensão de defender os interesses da sociedade, muitas instituições ou agentes são constantemente tentados a pressionar o poder concedente a mudar as regras regulatórias ou desrespeitar cláusulas de contratos estabelecidos. Em inúmeras situações, essa pressão segue para questionamentos judiciais, restando aos concessionários que os juízes não caiam na tentação de trilhar o mesmo caminho.

Na infraestrutura, a relação entre empresas e poder concedente ocorre por meio de uma plataforma legal constituída por marcos regulatórios, legislação subsequente a eles e contratos de autorização, permissão ou concessão de serviços públicos para a operação de empresas estatais ou privadas. As agências reguladoras se encarregam de verificar periodicamente a qualidade dos serviços, o cumprimento das metas, os investimentos dos concessionários, a evolução dos custos e a revisão tarifária.

Obras de infraestrutura requerem investimentos expressivos. O investidor utiliza recursos próprios e empréstimos tomados no sistema financeiro, sustentados por complexos mecanismos de garantias. Essas obras demoram a ficar prontas, geralmente entre três e cinco anos. Durante esse prazo, só há despesas e custos: compra de insumos e materiais, pagamento de milhares de funcionários, juros dos empréstimos, encargos tributários e trabalhistas, apólices de seguro e garantias, entre outros. Não há receita, pois não há ainda a venda dos serviços. No jargão do mercado, são os chamados projetos de longa maturação - demoram a entrar em operação comercial, exigem muito endividamento e oferecem rentabilidade somente no longo prazo. Todas as dívidas assumidas antes da construção são pagas ao longo do tempo que dura a concessão.

Apesar de ser um terreno árido para alguns, não é impossível entender como custos e preços interagem. Empreender na infraestrutura é disputar uma verdadeira corrida de obstáculos. Desenvolver uma usina hidrelétrica, por exemplo, pode durar anos entre o cumprimento de diversas fases, como os inventários dos rios, os estudos de viabilidade, os projetos de engenharia, sem contar a obtenção das licenças ambientais e o equacionamento das questões fundiárias, por meio dos mais complexos processos.

Em todas as áreas da infraestrutura, depois de vencida essa primeira fase, há a construção do empreendimento, que requer projetos executivos, compra de sofisticados equipamentos, milhares de trabalhadores envolvidos e ainda a difícil tarefa de organizar as fontes de recursos financeiros. O empreendedor assume todos os riscos, desde as pesadas multas e consequências de atrasos nas obras, até os que envolvem custo financeiro dos projetos que representam boa parcela do custo final. Esta gangorra que envolve o custo dos empreendimentos funciona dos dois lados: pendem ora contra ora a favor do empreendimento. Por isso as regras precisam ser permanentes, excluindo a possibilidade de alterar sistematicamente os contratos.

Riscos e rentabilidade andam juntos. Quebrar a equação quando convém é trabalhar para dissociá-los. Assim, antes de contestar preços dos pedágios de concessões de rodovias, dos empreendimentos de energia elétrica e recentemente do preço do gás natural em São Paulo, é preciso ponderar diversos fatores que envolvem custos e riscos. As tarifas cobradas hoje carregam custos assumidos no início das obras - e os financeiros são parte considerável desta estrutura de preços. Para se ter uma ideia, em dezembro de 1997, a taxa Selic, que serve como parâmetro para operações do mercado financeiro, era de 38% ao ano. Chegou a 45% ao ano em março de 1999. Hoje, está em 9,25%. A TJLP (Taxa de Juros de Longo Prazo), utilizada nos empréstimos feitos pelo BNDES, que suporta com financiamentos cerca de 70% dos investimentos de infraestrutura no país, era de 26,01% ao ano em janeiro de 1995. Hoje, está em 6% ao ano.

Esses parâmetros e fatores são considerados pelos órgãos reguladores ou por outros agentes do Estado, que fiscalizam os contratos de concessão em infraestrutura. Eles devem agir para garantir que o usuário não sofra abusos e que o concessionário receba reajustes de acordo com a oscilação de custos. Eles também garantem que a incompetência ou a baixa produtividade do prestador de serviço não seja repassada ao consumidor. Paralelamente, os leilões de concessão elegem como vencedores os investidores que oferecem o menor preço final ao usuário. Quem abocanha toda essa redução monumental de custos e preços é o cidadão.

O mesmo brado que, por conveniência momentânea, conclama a quebra de um contrato hoje, abre caminho para exigir recomposição amanhã, quando as condições forem adversas ao concessionário. Só que assim o país estará destruindo uma das principais conquistas destes anos de estabilidade e amadurecimento: o respeito às regras e aos contratos.

Paulo Godoy é presidente da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib).