Título: A folha da discórdia
Autor: Vaz, Viviane
Fonte: Correio Braziliense, 07/06/2010, Mundo, p. 24

Bolívia

Evo Morales ameaça expulsar agência americana e acusa os Estados Unidos de favorecerem o narcotráfico para manchar imagem do país

Diz a lenda que o primeiro inca e filho do sol, Mango Capac, desceu do céu sobre as águas do Lago Titicaca para ensinar aos homens a agricultura e as artes, além de presenteá-los com as primeiras sementes de coca, para torná-los capazes de suportar o cansaço e a fome. No século 21, a planta virou sinônimo de cocaína e polêmica política nacional e internacional. Há dois dias, o presidente boliviano, Evo Morales, ameaçou expulsar da Bolívia a Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), assim como fez em 2008 com o embaixador dos Estados Unidos e com a agência americana antidrogas (DEA). Uma semana antes, Morales já havia acusado os EUA pelo aumento do narcotráfico em seu país, enquanto o pré-candidato à presidência brasileira, José Serra (PSDB), culpou o governo boliviano pela entrada da droga no Brasil(1) (leia mais nesta página).

Evo Morales sustenta que a Usaid e a DEA trabalham contra seu governo. ¿A Usaid paga algumas Ongs e fundações e essas se infiltram em algumas organizações sociais do país, às vezes, inclusive, dando dinheiro a alguns líderes sindicais¿, afirmou o presidente, durante um encontro de cocaleiros na região de Chapare. Segundo Morales, que dirige um governo apoiado por grupos indígenas e cocaleiros, esse processo de infiltração mediante a utilização de líderes sociais pretende gerar conflitos para sua administração.

O presidente advertiu que, ¿se a Usaid continuar trabalhando assim, não vou hesitar em expulsá-la¿, depois de lembrar que ¿(já) expulsamos o embaixador americano e a DEA¿. Morales também criticou o presidente Barack Obama por designar Mark Feierstein como novo administrador-adjunto para América Latina e Caribe da Usaid, porque disse que ele esteve ligado à consultoria política Greenberg Quinlan Rosner, que assessorou o ex-presidente liberal Gonzalo Sánchez de Lozada (2002-2003).

¿Ninguém me amedronta¿ As insinuações sobre supostas infiltrações dos Estados Unidos no país também foram assunto de Morales, na semana passada, durante um ato militar. De acordo com ele, os americanos favorecem os responsáveis pelo tráfico. O boliviano tem acusado magistrados de seu país de receber remuneração dos Estados Unidos para exercer o controle político na Bolívia. ¿Vamos continuar denunciando isso, ninguém me amedronta¿, completou.

O presidente citou as prisões e libertações do traficante William Rosales, que está desaparecido. ¿Quem o libera? Um juiz e promotores que recebem apoio econômico ou salários dos Estados Unidos¿, afirmou Morales. ¿Vejo que há muita cumplicidade de algumas instituições, de membros da Justiça boliviana, mas também de alguns membros da polícia. Por que essa forma de comprar nossos membros do Estado? Cheguei à conclusão de que é muita plata (dinheiro), o narcotráfico manipula muita plata¿, concluiu.

A declaração foi feita na véspera da primeira visita oficial a La Paz do secretário adjunto de Estado dos Estados Unidos para o Hemisfério Ocidental, Arturo Valenzuela, mas não impediu a retomada de um acordo de relações de respeito mútuo, negociado junto com o chanceler boliviano, David Choquehuanca. O acordo, que estaria ¿99% pronto¿, segundo Morales, tenta resolver o mal-estar criado em novembro de 2008, quando o governo boliviano expulsou a DEA do país.

Aumento no cultivo Em março, Washington ratificou que a superfície total de plantações de coca na Bolívia era de 34,5 mil hectares. Segundo as Nações Unidas, um ano antes, os cultivos do arbusto cobriam 30,5 mil hectares. O informe do escritório da ONU para combate às drogas divulgado em junho de 2009 relata que o cultivo da folha de coca na Bolívia cresceu 6% em 2008 e que a produção potencial de cocaína aumentou para 113 toneladas métricas. Outro relatório comparativo da Undoc avalia que em 2008 houve uma diminuição de 18% do cultivo do vegetal na Colômbia, enquanto na Bolívia e no Peru, houve um aumento de 4,5% e 6%, respectivamente.

Segundo o diretor executivo do escritório da ONU, Antonio Maria Costa, ¿esses aumentos ¿ ainda que relativamente pequenos ¿ continuam a tendência notada em anos recentes¿. ¿A Bolívia deve enfocar seus esforços à erradicação manual, e poderia se beneficiar de mais ajuda ao desenvolvimento que permita aos cocaleiros deixar de depender do cultivo de coca¿, afirmou Costa.

Já o ex-presidente cubano, Fidel Castro, defende que banir a coca dos países andinos é como tirar o chá dos ingleses, pois a folha, cuja erradicação é recomendada por um tratado da ONU de 1961, é usada pelos indígenas dos Andes até hoje. Juntamente com o presidente venezuelano, Hugo Chávez, Fidel apóia a política de Morales ¿coca sim, cocaína, não¿. O grupo defende que a folha contém menos de 1% do alcaloide usado em grandes quantidades para fazer cocaína.

1 - Apreensão no Paraguai A polícia paraguaia apreendeu 13kg de alta pureza na cidade de Pedro Juan Caballero, 500 km ao norte da capital, e que faz fronteira com o Brasil. De acordo com a Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), a droga estava em poder de quatro pessoas de nacionalidade paraguaia, que foram detidas e colocadas à disposição do Ministério Público. A cocaína foi preparada para envio ao mercado brasileiro, destino habitual da droga transportada na região.

Para saber mais Origem divina

Pesquisas históricas indicam que as folhas de coca são usadas pelos índios da América do Sul desde 500 a.C.. No século 15, os antigos incas acreditavam que a coca tinha origem divina, e o cultivo da planta estava restrito ao monopólio do Estado, assim como seu uso, de exclusividade dos nobres e altos funcionários de Topa Inca (1471-1493). Com o declínio do império inca, o rei Felipe II da Espanha reconheceu a droga como fundamental para o bem-estar dos povos indígenas, mas proibiu os missionários de usá-la em cultos religiosos. O reino espanhol passou a incentivar o consumo pela maioria da população para aumentar a tolerância à fome, ao cansaço e à resistência ¿ uma das razões pela qual a coca ainda é usada até hoje.

A coca chegou à Europa no século 16, mas foi em meados do século 19 que os laboratórios começaram a utilizar suas folhas para produzir remédios e estimulantes, o que também levou à criação de bebidas e refrigerantes. Em 1859, Albert Niemann, da Universidade de Göttingen, foi a primeira pessoa a isolar o principal alcaloide da coca, que ele chamou de cocaína. A partir de 2007, os governos do Peru, da Bolívia e da Venezuela começaram a defender o consumo tradicional da coca, assim como seu uso em produtos domésticos, como chá, pasta de dente, calçado e vestuário. (VV)

José Serra: ¿corpo mole¿

O pré-candidato à presidência da República pelo PSDB, José Serra, reafirmou em Olinda (PE), na semana passada, que a Bolívia faz ¿corpo mole¿ no combate ao tráfico de drogas, e considerou ¿não valer uma nota de R$ 3¿ a declaração do chanceler boliviano, David Choquehuanca, que qualificou o posicionamento de Serra como ¿político-eleitoral¿.

¿Eu acho que o governo brasileiro deve pressionar o governo boliviano fortemente, não pela força, mas pela pressão moral, no sentido de que combata a exportação da coca para o Brasil¿, disse Serra. ¿Você acha que poderia entrar toda essa cocaína no Brasil sem que o governo boliviano fizesse pelo menos corpo mole? Acho que não¿, disse o candidato tucano em outro momento, em campanha no Rio de Janeiro.

Já a candidata governista, Dilma Rousseff (PT) defendeu a Bolívia das acusações de Serra e disse que tais acusações sem provas ¿são indignas de um estadista¿ e que não se pode culpar um governo pela droga que sai do país. O governo Lula tem defendido publicamente que Bolívia e Brasil lutam conjuntamente contra o tráfico de drogas.

Dados da Polícia Federal indicam que 80% da cocaína distribuída no país viria da Bolívia, grande parte em forma de ¿pasta¿ e que o refino seria feito no Brasil. Parte da droga seria consumida no Brasil e outra parte, enviada ao exterior. (VV)