Título: Carlos de Assis , José
Autor: Uma nova bolha no horizonte
Fonte: Valor Econômico, 11/08/2009, Opinião, p. A14

É preciso segregar a esfera especulativa bancária da esfera ligada ao setor produtivo para estabilizar o sistema

Sem uma compreensão clara das razões que levaram à atual crise, será muito difícil especular sobre as condições para a recuperação. A reação normal é buscar padrões estatísticos no passado e inferir como retomada qualquer leve sinal de alta nas bolsas ou na economia real. Há fatores desconcertantes, porém. No centro da crise, na economia americana, a produção no segundo trimestre teve queda menor que esperada (1% e não 1,5%), mas o consumo recuou 2,5%. E como todos sabem, é o consumo o grande motor da economia dos EUA.

Não há, pois, efetivamente, sinais de recuperação à vista nos EUA, na Europa e no Japão. Há, sim, sinais de flutuação no fundo do poço. Caso isso se confirme na forma de uma longa recessão, como a japonesa dos anos 90 para cá, podemos nos preparar para uma nova derrocada financeira a curto prazo, desta vez ainda mais devastadora que a atual. É que talvez seja necessária uma dose dupla de crise para que as lições da primeira sejam finalmente compreendidas e tomadas as medidas necessárias para uma recuperação efetivamente saudável.

A crise assinalou uma mudança de paradigma no coração do capitalismo, mas muitos tomam isso como simples retórica. Não se percebeu que a descolagem do sistema financeiro especulativo do sistema real, origem da crise, aponta na direção de uma contradição fundamental que, na prática, só se resolverá com perdas patrimoniais incomensuráveis. Diante dos US$ 650 trilhões de derivativos e de US$ 160 trilhões de ativos financeiros que giravam no mundo em meados do ano passado, as perdas estimadas de US$ 3 trilhões, já verificadas, são relativamente modestas.

Ficaram apenas nisso, por enquanto, porque os governos enterraram bilhões de dólares para salvar seus sistemas bancários. Contudo, os governos pouco fizeram para eliminar a contradição entre finanças especulativas e economia real. Em março, o Morgan registrava em suas contas US$ 81 trilhões em derivativos. E a divulgação dos balanços bancários do segundo trimestre deixou escandalizados o mundo político nos EUA e na Europa: só o Goldman Sachs registrou um lucro de US$ 13,8 bilhões, feito em grande parte na transação com derivativos com dinheiro barato do governo!

A discussão nos EUA está tomando o caminho errado da simples condenação moral dos bancos socorridos pelos governos por conta dos altos dividendos distribuídos e dos bônus bilionários pagos aos empregados. Trata-se de um acinte, mas não é isso que está bloqueando a recuperação das economias centrais. O bloqueio vem do fato de que os bancos, e em especial quatro ou cinco gigantescos bancos de investimento, voltaram a ganhar somas imensas na esfera especulativa, enquanto a economia real continua a sofrer os efeitos de uma tremenda contração do crédito.

Desde o velho Marx se sabe da tendência capitalista a tentar fazer dinheiro sobre dinheiro sem passar pela esfera produtiva. Boa parte das crises financeiras no mundo se originaram daí. Para alguns, esta seria apenas mais uma. Entretanto, mudanças quantitativas causam mudanças qualitativas, disse também Marx. O volume de ativos financeiros acumulados no mundo é de tal ordem que o sistema bancário de investimento descobriu uma maneira de ganhar muito dinheiro sem ter de emprestar à indústria: basta transacionar com ativos existentes, através dos derivativos.

À primeira vista, trata-se de uma transação financeira normal: junta-se um grupo de hipotecas com prazo de 30 anos, picota-se o bloco em tranches com prazo de um ano e vende-se no mercado a taxas de rentabilidade competitivas. O problema de liquidez é resolvido num mercado secundário e a questão do risco é resolvida pelo selo de grau de investimento AAA por uma classificadora (algo que ela faz sem maiores escrúpulos sob o argumento de que historicamente o nível de inadimplência não ultrapassava 15%; assim, 85% do bloco mereciam classificação AAA).

O expediente transforma ativo de longo prazo (hipotecada) em ativos de curto prazo (derivativos). Num mercado fortemente especulativo, ávido por ativos de alta rentabilidade e liquidez, isso era apenas um exemplo de "criatividade" do sistema bancário americano, logo copiado em parte na Europa. Seu funcionamento, contudo, só se efetiva sob três condições: se o ritmo de crescimento da renda na economia real puder suportar o custo do aumento da renda do setor especulativo; se houver perdas patrimoniais para compensar o diferencial; ou pelo esquema Ponzi.

Em períodos de crescimento normal ou de boom, mesmo um aumento de renda inferior ao da renda dos ativos financeiros pode subsistir se o estoque de ativos for inferior ao valor do produto. No quadro atual, porém, é o inverso que acontece. Tudo se converte num gigantesco esquema Ponzi, que desmonta no momento da recessão. Então, o que se chama de desalavancagem não passa de um processo regressivo de perdas patrimoniais que finalmente recaem sobre o emissor original dos ativos ou seu garantidor, o próprio governo.

Pode-se garantir com recursos públicos a liquidez do sistema bancário, e, em parte, suas perdas patrimoniais. Mas não se pode fazer isso indefinidamente, à custa da economia real. Na medida em que os grandes bancos ganham mais na transação com ativos financeiros existentes do que com financiamento a novas atividades produtivas, a distância entre economia financeira e economia real aumentará. Em algum momento, a bolha estourará de novo, na forma de um crescimento generalizado de inadimplência na fronteira entre a especulação e a economia real.

Conceitualmente, só existe um modo de restabelecer a "normalidade" bancária dentro do sistema capitalista: segregar a esfera especulativa bancária da esfera ligada ao setor produtivo. Isso seria possível descolando inteiramente os bancos de investimento e instituições similares dos bancos comerciais que operam com depósitos do público. Os primeiros operariam como num cassino, sem garantia do Estado, e aos segundos, garantidos pelo Banco Central, seria reservado o financiamento ao setor produtivo como única atividade. Contudo, pode isso funcionar sem estatização?

José Carlos de Assis é economista e professor, presidente do Instituto Desemprego Zero.