Título: Sistema cassa mandatos, mas mantém doação ilegal
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 02/09/2009, Opinião, p. A14

Não é fácil legislar sobre eleições. Em primeiro lugar porque o Congresso, que define as regras eleitorais, delas se beneficia como mandatário do voto popular.

Em segundo, porque se de um lado é difícil mudar leis que definem o destino político dos parlamentares, de outro elas também estão muito sujeitas a repercussões de escândalos políticos. Se o sistema eleitoral se arraiga no tecido social porque é o ambiente político dos deputados e senadores que por ele são eleitos e têm o poder de mantê-lo intocado, as suas determinações acessórias, de caráter regulativo e punitivo, tendem a ser permeáveis à conjuntura política e constituem a resposta mais rápida a ondas fortes de condenação da opinião pública. As eleições de 2006, por exemplo, foram presididas por regras mais rígidas de punição e controle dos partidos e candidatos nas campanhas eleitorais, em função do mal-estar causado pelo chamado escândalo do Mensalão. Na época, os partidos aprovaram a toque de caixa medidas rigorosas que supostamente restituiriam a moralidade ao pleito.

A terceira dificuldade na definição de regras eleitorais é que elas têm que ser aplicadas por uma Justiça Eleitoral ágil e com alguma organicidade - uma lei dura sem uma justiça que a aplique é letra morta.

Assim como existe a discussão, na área criminal, sobre se a eficiência da legislação depende do rigor da pena, não é consenso também que a moralização da área política requeira penas sempre progressivas. A legislação eleitoral, por exemplo, define limites de financiamento para pessoas físicas e jurídicas (10% do rendimento do ano anterior para as pessoas físicas, 2% do faturamento bruto do ano anterior para as empresas) e penalidades para o descumprimento desses limites (multa de até cinco vezes ao valor que ultrapassa os limites legais e proibição por cinco anos, no caso das empresas, de contratos com o poder público). Define ainda que o financiamento tem que ser declarado à Justiça Eleitoral e que o candidato e o partido devem prestar contas depois do pleito. Para punir faltosos, basta aplicar a lei.

Um exemplo de como uma lei rigorosa pode tornar-se apenas letra morta é a recente decisão do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de São Paulo, de arquivar uma representação contra financiador de campanha que excedeu o limite legal de doação a campanhas eleitorais em 2006. A decisão tem o poder de derrubar as 2.700 representações protocoladas pela Procuradoria Regional Eleitoral, que totalizariam R$ 390 milhões em multas. Os juízes do TRE paulista decidiram contra a representação levantando os seguintes argumentos: a partir de um determinado prazo, "o sistema abre mão do valor de "justiça" e opta pelo valor "segurança"", segundo o 2º juiz eleitoral Flávio Yarshell; para o relator do processo, Paulo Alcides, a multa seria inútil pela "falta de interesse de agir" e, uma vez inútil, seria "inexigível".

As representações foram feitas, em todo o país, pelas Procuradorias Eleitorais Regionais, e foram baseadas em cruzamentos de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e Secretaria de Receita Federal (SRF), dos valores doados nas eleições de 2006 e dos rendimentos das pessoas físicas e jurídicas declarados no ano anterior. Esse cruzamento foi feito a partir de portaria de 2006. Em março deste ano, o TSE orientou as Procuradorias Eleitorais a moverem representações com base nesses cruzamentos. Nos últimos dias de agosto, os TREs de Roraima, Acre, Alagoas, Tocantins e Manaus deram seguimento a reclamações contra doadores irregulares. O TRE paulista achou que isso era perda de tempo. A Procuradoria de São Paulo vai recorrer da decisão do TRE ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) - e como a representação foi sugerida pelo seu presidente, o ministro Carlos Ayres Britto, as representações têm grandes chances de serem acatadas na instância superior. Todavia, leis eleitorais rígidas e Justiça morosa não combinam. Todo espírito da lei eleitoral e das regulamentações feitas pelo TSE é o de, sempre que possível, impedir um mandato conseguido a custa de ilegalidades. É um contrassenso um sistema que cassa mandatos tão facilmente - o TSE afastou dois dos governadores eleitos em 2006 por irregularidades no pleito -, mas que tem tanta dificuldade de punir financiamentos ilegais de campanha, que são o calcanhar de Aquiles da história democrática brasileira.