Título: Ex-FMI propõe gatilho para capitalizar o sistema financeiro
Autor: Lucchesi , Cristiane Perini
Fonte: Valor Econômico, 19/08/2009, Finanças, p. C8

O mundo está saindo da recessão e do pânico financeiro, mas apenas mudanças cosméticas foram realizadas e elas poderão não ser suficientes para conter uma nova avalanche no futuro. Essa é a visão do indiano Raghuram Rajan, 46 anos, que foi economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI) de 2003 a 2006 e hoje é professor na Universidade de Chicago. Ele propõe amortecedores e gatilhos automáticos para capitalizar os bancos em caso de risco sistêmico.

"O público está muito insatisfeito com essa forma de capitalismo na qual o setor privado aproveita os bons momentos, quando o mercado sobe, mas é o contribuinte que assume as perdas em períodos difíceis", diz. "Você precisa fazer com que o setor privado pague por isso também", afirmou, em entrevista ao Valor, por telefone, de Chicago.

Ele critica as autoridades americanas, que ficaram "sentadas assistindo" enquanto os bancos ainda descapitalizados pagaram "bônus enormes" aos seus funcionários. "Eu acho que eles deveriam atuar e restringir alguns desses bônus", disse Rajan, que virá ao Brasil participar do 4º Congresso Internacional de Mercados Financeiro e de Capitais, em Campos do Jordão, interior de São Paulo, no final de agosto.

Voz dissonante no mundo do livre mercado, Rajan já alertava sobre a possibilidade de uma "catástrofe nas finanças" em entrevista ao Valor em setembro de 2005. Na época ele fazia conferências sobre os riscos dos cada vez mais complexos produtos financeiros, principalmente os derivativos de crédito. Dizia que os bancos poderiam perder a confiança uns nos outros se houvesse um problema com esses derivativos e que o mercado interbancário poderia congelar. Mas era considerado um "ludita" que queria destruir as mais importantes inovações financeiras, segundo definiu reportagem do "The Wall Street Journal".

Hoje, o engenheiro elétrico graduado na Índia e PhD pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) não se limita a colher os louros de seus acertos passados. Criou um grupo com outros 14 acadêmicos para elaborar propostas concretas para tentar melhorar o funcionamento do sistema financeiro, o Squam Lake Working Group. "O meu medo é que nós não passemos o tempo necessário pensando sobre as lições a respeito dessa crise e quais as mudanças reais que nós precisamos", diz ele.

Um dos pilares de suas propostas é criar uma espécie de capital contingente para os bancos, uma dívida que seria conversível em ações automaticamente se dois gatilhos fossem acionados ao mesmo tempo: 1) o banco tivesse perdas que o obrigasse a buscar capital, e 2) essas perdas fossem grandes o suficiente para criar um risco sistêmico. "A ideia seria criar um capital que entra no sistema quando o setor privado fica com problema, de forma que você não precise de dinheiro dos contribuintes", explica.

Isso, de um lado, puniria o acionista do banco, diluindo consideravelmente sua participação no capital da instituição financeira, e daria aos bancos um "amortecedor", conforme definiu ele, para aguentar as perdas adicionais que viriam. Outra alternativa no mesmo sentido seria fazer com que os bancos comprassem seguro contra perdas em seu capital.

Na sua visão, os dirigentes dos bancos e seus funcionários poderiam continuar a ganhar bônus, mas de acordo com sua performance não apenas no curto prazo. Seria criada uma conta à parte onde seriam depositados esses bônus, e, se o banco viesse a registrar perdas depois de um determinado período o dinheiro iria capitalizar o banco e os executivos perderiam essa remuneração-extra. "O problema hoje é que você pode criar um monte de lucro financeiro corrente sacrificando o futuro", diz.

Além dessas propostas de mudanças no sistema de governança dos bancos, que já vem sendo adotadas em parte pelo Morgan Stanley e UBS, Rajan sugere que as instituições financeiras teriam de se tornar mais "fáceis de falir". Parte dessa mudança viria simplesmente da criação de formas para barrar "todas essas fusões que tornam os bancos megabancos". Rajan vem defendendo que as instituições financeiras pensem sobre o custo de se tornarem muito complicados, sendo forçadas a desenvolverem um plano para sua própria falência. "Os bancos deveriam de pensar o que vai acontecer se tivessem de fechar em um final de semana e teriam de se encontrar com os reguladores regularmente para conversar sobre esses planos e fazer testes de estresse", propõe.

Um admirador do economista britânico John Maynard Keynes desde o colegial, Rajan vê necessidade de mudanças na regulamentação do sistema financeiro internacional. Mas, no seu entender, a questão central hoje não é pensar se há regulamentação suficiente, mas sim como fazer com que os reguladores forcem o cumprimento das regras existentes. Ele citou William McChesney Martin, que foi presidente do Fed de abril de 51 até janeiro de 70, que dizia que o papel do banco central americano é "levar embora a jarra de ponche enquanto a festa continua". Para ele, é muito difícil para o Fed acertar quando deve pegar o ponche e sair. "Isso é de alguma forma o que nós vemos agora: os reguladores não acreditavam que o setor privado ia fazer as coisas de forma tão errada e dessa forma eles não fizeram cumprir as regulamentações que tinham à mão."

Ele concorda que a recessão acabou e que bancos também parecem estar mais confiantes. Mas alerta que uma segunda onda de perdas não está descartada, por conta das hipotecas dos imóveis comerciais. "Se o desemprego continuar a crescer consideravelmente e se os negócios não trouxerem investimentos mesmo quando o estímulo fiscal e monetário chegar ao fim nós poderíamos ter de novo um crescimento muito menor nos países industrializados", avalia.

Ele vê os gastos públicos como necessários neste momento, mas considera que eles precisam ser realizados de forma eficiente, "para conseguir o efeito desejado". Com o crescimento menor nos países riscos, os governos dos países emergentes também terão "de fazer um pouco mais", diz. Mas, no entanto, falando como um legítimo representante do FMI, ele considera que os governos dos emergentes deveriam aproveitar a oportunidade "para expandir algumas das reformas" que tornem mais favoráveis o ambiente para o setor privado atuar. "Isso é mais importante do que focar nos estímulos monetários ou fiscais", afirma.

Rajan defende que os emergentes poderiam usar o FMI como um sistema de agrupamento de reservas, da forma como os países industrializados vinham fazendo antes. "Nenhum país teria de construir um sistema muito grande de reservas, pois poderia usar o fundo para ajudar quem quer que esteja com problemas e evitar riscos para o mundo todo e os próprios emergentes", avalia. Para isso, só falta os países emergentes se unirem em torno de uma proposta única, o que lhes permitiria ganhar mais poder político no FMI. "Teria de haver um plano único dos mercados emergentes, que seria algo muito difícil de resistir", diz. "Mas até agora os mercados emergentes estão lutando uns contra os outros."

Ele considera que os países emergentes ainda não são a locomotiva do crescimento, nem mesmo a China, que "tem um Produto Interno Bruto relativamente pequeno na economia internacional". Mas acredita que isso vá mudar em um prazo médio. "A demanda mundial vai ter uma guinada para os mercados emergentes, que terão importância crescente", avalia. Por isso, na sua visão, a apreciação da moeda brasileira é estrutural, algo que iria acontecer de qualquer jeito em parte porque a demanda dos países industrializados está caindo em termos relativos e os fluxos de capitais agora se dão na direção dos mercados emergentes. "Certamente isso vai reduzir o processo de exportações, mas vai criar mais incentivos para os emergentes olharem para seus próprios mercados e um para o mercado do outro", diz.