Título: Crise na forma de eletrocardiograma
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 14/09/2009, Opinião, p. A12

Enquanto se discute se estamos num processo de recuperação mundial na forma de V, de U ou de W, continua insolúvel no epicentro da crise o problema de um sistema financeiro colapsado que, salvo uma reestruturação profunda, atuará como força gravitacional para manter a economia dos países industrializados num ritmo que não lembra letras, mas um eletrocardiograma. O mundo, fora China e Índia, deve se preparar, pois, para uma longa flutuação no fundo do poço, até que os canais ligando poupança real e investimento real sejam restaurados.

É inimaginável o crescimento sustentável de uma economia capitalista sem bancos. Nenhuma corporação ou empresa projeta investimentos de longo prazo exclusivamente com recursos próprios. Muitas recorrem ao mercado acionário, mas, mesmo neste caso, a proporção entre captação em bolsa e o investimento programado é extremamente baixa. Por outro lado, os donos da poupança financeira temem aplicações de longo prazo. O papel dos bancos consiste, pois, em transformar depósitos de curto prazo em investimentos de longo prazo das empresas.

Talvez esses mecanismos sejam pouco apreendidos entre nós porque a banca privada brasileira não empresta a longo prazo. Esse papel é desempenhado pelo BNDES, com base em passivos institucionais de longo prazo. É o que garante o financiamento da economia e o funcionamento razoável do capitalismo brasileiro - a despeito de que, também aqui, a taxa de investimento esteja caindo. Nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, porém, não há bancos de desenvolvimento públicos. Ou o sistema privado retoma sua função de tomar a curto e emprestar a longo, ou a taxa de investimento na economia vai desabar.

Então, o que estão fazendo os grandes bancos norte-americanos e europeus? Os prédios estão lá, as filiais pelo mundo também e os funcionários continuam trabalhando. Tudo parece como antes, mas o fato é que suas atividades estão concentradas hoje em bilionárias operações de câmbio, intermediação na colocação de bônus de corporações a troco de comissões e operações com derivativos em diferentes mercados. Só o Morgan tinha em carteira, em março, US$ 81 trilhões em derivativos. E se alguém duvida de como essas atividades rendem, basta lembrar que, no segundo trimestre, o lucro do Goldman foi de US$ 14,8 bilhões.

Nada disso se traduz em alavancagem de investimentos a longo prazo. Mesmo os bônus emitidos por corporações em geral se limitam a financiar a produção corrente, não o aumento de capacidade. E a emissão de bônus não está ao alcance das médias e pequenas empresas, só as muito grandes. Já os elevados lucros que bancos sustentados pelo governo norte-americano voltaram a exibir têm pouco a ver com o fortalecimento de sua atividade de emprestar a longo prazo. Já descontada a parte de provisões parciais para ativos podres, são empregados simplesmente para distribuir dividendos e bônus às diretorias e conselhos.

Tudo isso deve ser visto como uma armadilha estrutural na qual se emaranhou o sistema bancário dos principais países desenvolvidos, e não como uma conspiração de banqueiros avarentos. Por trás do emaranhado estão os ativos podres, ou tóxicos. Só no sistema imobiliário são US$ 5,4 trilhões; nos 19 maiores bancos, algo como US$ 3 trilhões. Nem tudo é irrecuperável. Mas a parte recuperável será tanto maior quanto mais rápido houver uma recuperação da economia e do emprego. A economia norte-americana está se estabilizando no fundo do poço; a britânica continua caindo e a alemã e francesa deram, no último trimestre, ligeiros sinais de recuperação.

Mas isso é uma recuperação da produção, não do investimento. E o emprego, uma variável essencial, continua despencando nos Estados Unidos. É claro que a recuperação da produção é uma preliminar indispensável para a retomada dos investimentos, porém ela não basta, sozinha. Tem que vir junto uma perspectiva clara de recuperação do emprego. E, em qualquer hipótese, é essencial que o sistema bancário esteja preparado para retomar os empréstimos de longo prazo, sem o qual não há investimento, nem crescimento sustentável.

Antes de confiarmos numa recuperação em U ou mesmo em W, é preciso examinar as condições para que os bancos retomem sua função tradicional (nos países desenvolvidos) de emprestar a longo prazo. Eles teriam de se livrar, de alguma forma, dos ativos tóxicos. Contudo, não aceitam fazer isso no esquema proposto pelo secretário do Tesouro Geithner (leilões).

Como têm a garantia do governo de que não vão quebrar, preferem continuar ganhando bilhões de dólares nas atividades paralelas a explicitar sua real situação de balanço. Enquanto isso durar, e espera-se que a próxima reunião do G-20 sinalize uma saída, teremos, daqui para frente, um gráfico de eletrocardiograma para descrever a evolução da economia mundial - com a óbvia exceção de China, Índia e até mesmo o Brasil, que têm sistema bancários colados (no nosso caso, parcialmente) à economia real e ao investimento de longo prazo.

J. Carlos de Assis é economista e professor, autor de "A Crise da Globalização"