Título: A saúde da população e a farda dos policiais
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 16/09/2009, Opinião, p. A10
O Congresso vem reiteradamente empurrando com a barriga a regulamentação da Emenda 29. A emenda, aprovada no ano 2000, teoricamente obriga os Estados a gastar 12% de seus Orçamentos, e os municípios, 15% de suas receitas, com o setor. Apenas teoricamente. Sem regulamentação, o texto constitucional virou apenas brincadeira para criança.
Segundo relatório do Ministério da Saúde divulgado na edição de segunda-feira da "Folha de S. Paulo", 16 Estados deixaram de aplicar os 12% de seus Orçamentos na Saúde em 2007, o que significa que deixaram de ser gastos no setor, apenas naquele ano, R$ 3,6 bilhões. O Estado que menos investiu foi o Rio Grande do Sul, que destinou 3,75% para a Saúde. Foi o mais atingido pelo vírus da Influenza A (H1N1), a popular gripe suína: 165 mortes computadas até ontem, desde o início da pandemia.
A Emenda 29 situa-se no terreno do faz-de-conta desde que foi aprovada. Na falta de regulamentação, simplesmente foi ignorada pelos Estados e municípios. Em 2002, iniciou-se a tramitação de um projeto de lei regulamentando a mudança constitucional, que define quais são as despesas que podem ser consideradas na rubrica "Saúde" e as punições para os governadores e prefeitos que não cumprirem a determinação. Uma vez aprovado, o projeto permitiria à União reter as verbas dos Estados que não cumprissem a norma constitucional e, em caso extremo, até a intervir nos entes federados. Os governadores, pela proposta, poderiam responder por crime de responsabilidade a essa insubordinação.
Enquanto o projeto dormia no buraco negro do Congresso, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) tentou outro caminho para cobrar obediência dos Estados e municípios à emenda: baixou uma resolução que, sem força de lei, virou outra letra morta. Os entes federados, aí incluído o próprio Executivo federal, continuam definindo seus próprios critérios de gastos com a Saúde, os tribunais de contas respectivos engolem o pacote e, assim, continuam a se desenrolar situações absurdas.
A matéria da "Folha de S. Paulo" relata maquiagens inacreditáveis nos gastos com a Saúde. O Estado do Rio declarou como gasto com o setor o financiamento de restaurantes populares e o projeto de despoluição da Baía da Guanabara. No Paraná, entraram na rubrica os uniformes de policiais militares e a merenda escolar. Em Minas, financiamento de moradia. Em Goiás, a ampliação do rádio, da televisão e da gráfica estaduais. Da mesma forma, compuseram a conta da Saúde, nos mais diversos Estados, tratamento de esgoto, planos de saúde, aposentadorias de servidores da área de Saúde, alimentação de presidiários e programas de transferência de renda.
Às dificuldades de regulamentação óbvias da Emenda 29 - aliás, basta a má vontade de governadores para que nada aconteça - soma-se a tentativa de colocar, no mesmo pacote, a nova versão da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), derrubada pelo Congresso em dezembro de 2007. O ministro da Saúde, José Gomes Temporão, começou a mobilizar setores ligados à saúde para um lobby destinado a aprovar a Contribuição Social para a Saúde (CSS), com uma alíquota de 0,1% sobre as movimentações financeiras. Bem menor que a CPMF, que também nasceu para financiar os gastos do setor e tinha uma alíquota de 0,38%, a tentativa, no entanto, desconhece uma decisão já tomada pelo Congresso contra o imposto - o que pode também acarretar sérios problemas com o Supremo Tribunal Federal (STF) - e promete dar um pretexto para os legisladores empurrarem ainda mais no tempo a regulamentação da Emenda 29, e na prática a obediência ao preceito constitucional de gastos mínimos com a Saúde.
Sem regulamentação, a Emenda 29 vai continuar na lista das ficções constitucionais do país: o Ministério da Saúde finge que fiscaliza e cobra dos Estados os gastos que eles dizem que são feitos com o setor; e os Estados contra-argumentam, sem nenhum temor da mentira, que o uniforme de policial militar é algo fundamental para a saúde da população. Os tribunais de contas, na ausência de regulamentação, aceitam subterfúgios e os governantes cumprem seus mandatos, sem serem importunados pela maçante obrigação de cumprir um preceito constitucional. Imprimir Compartilhar| Opinião: