Título: Tempos ruins para os bancos
Autor: Campos , José Roberto
Fonte: Valor Econômico, 11/09/2009, EU & Fim de semana, p. 10

Lord Adair Turner, o britânico Barão Turner de Ecchinswell, provoca sensação e ódio na City londrina com a defesa de uma proposta que poderia figurar entre as esquisitices do livro de recordes "Guinness", se estes não fossem tempos sombrios para os bancos. Com o peso de seu cargo, o de chefe da Financial Services Authority, ele tenta aprovar a obrigatoriedade de as instituições financeiras apresentarem um "testamento" ("living will"). A ideia é do presidente do Banco Central da Inglaterra, Mervyn King, e Turner tem força para transformá-la em realidade, como um dos líderes do Fórum de Estabilidade Financeira do Bank for International Settlements (BIS), o banco central dos bancos centrais, encarregado de ditar a nova "pax bancária" global pós-crise.

Turner sabe do que está falando e com quem está tratando: foi diretor do Standard Chartered Bank e, por seis anos, conselheiro sênior e vice-presidente da Merrill Lynch Europa. Seu raciocínio é direto e simples, assim como o temor dos bancos sobre as consequências da proposta é justificado e agudo. Os bancos terão de documentar claramente como poderiam ser liquidados, da forma mais eficiente possível, em caso de falência.

Essa é apenas uma ameaça entre as várias que estão no ar desde que a ganância desmedida das instituições financeiras arruinou a economia global e a lançou na maior crise desde a Grande Depressão. Os governos dos países que tomam conta de 80% do PIB mundial, reunidos no G-20, tentam agora acertar as contas com os bancos, depois de lhes dar a maior ajuda da história do capitalismo. Reina, porém, um enorme ceticismo sobre se os bancos serão ou não colocados na linha. Há muitos indícios de que o jogo financeiro mudará.

Lord Turner procura, com o "testamento", obrigar os bancos a simplificarem sua estrutura - de quebra, pagarão mais impostos, porque sua incrível complexidade serve a um minucioso planejamento tributário. Desmontar um gigante como o Lehman Brothers pode ser uma tarefa de anos. O conhecimento da "alma" dos bancos é, por isso, vital para que os governos possam realizar um inventário decente. O Lloyds londrino, por exemplo, é considerado um banco simples: tem 769 companhias no grupo ("Financial Times", 3 de setembro). Já o HSBC possui mais de 2.000. O propósito de Turner é delimitar essas estruturas legais, construídas para minimizar "a arbitragem de impostos e regulação".

É natural, embora não seja a tradição do país, que as autoridades britânicas apresentem sugestões radicais de como tratar os responsáveis por uma crise que transformou a tradicional City londrina, o centro europeu das finanças, em uma paisagem fúnebre. Mas do outro lado do oceano, nos Estados Unidos, há gente empenhada em transformar intenções semelhantes em fatos. Turner tem um aliado sério em Gary Gensler, o presidente da Commodity Futures Trading Commission, responsável pela vigilância de parte do mercado de derivativos, que hoje movimenta no mundo a bagatela de US$ 600 trilhões. Em conjunto com a SEC, a xerife do mercado de ações, Gensler espera que as propostas do governo de Barack Obama sejam aprovadas para ampliar as margens de garantia dos investidores e tornar mais rígidas as regras para criação de instrumentos financeiros. Gensler também conhece bem o assunto: foi até recentemente sócio da Goldman Sachs. Por ele, os grandes fundos de hedge, os mais poderosos apostadores das finanças globais, terão de se submeter a exigências de capital e de risco, enquanto que os derivativos que negociam serão customizados e passarão por câmeras de compensação. Até hoje, essa montanha de dinheiro circula no mercado de balcão, no qual é impossível saber quem está na zona de perigo e quanto dinheiro despejou em lances ousados. O aperto na vigilância já levou à suspensão de jogadas no mercado de trigo por fundos que operavam com commodities ligados ao Deutsche Bank e do maior fundo envolvido no mercado futuro de combustíveis americano.

Há quase unanimidade sobre as ações mais eficazes e imediatas para conter a enorme capacidade dos bancos de produzir estragos em larga escala. A principal delas é reduzir as chances de os banqueiros assumirem riscos, a alavancagem. Tanto os ministros de Finanças do G-20 quanto os presidentes dos bancos centrais e o BIS deram sinal verde para que as instituições financeiras que possam trazer "riscos sistêmicos" sejam obrigadas a ter um capital maior e de melhor qualidade. A menos que haja uma reviravolta brutal na economia, dificilmente os bancos escaparão disso.

Os bancos foram até o temerário limite de cobrir seus lances arriscados com dinheiro de curto prazo, obtido no atacado financeiro. Esse é outro ponto em que já há sinais de mudanças para melhor. Os ventos da transformação sopram da Nova Zelândia, cujas autoridades monetárias foram as primeiras a estrear o sistema de metas de inflação e, agora, parecem pioneiras no aprimoramento de regras para a gestão de liquidez bancária. O BC neozelandês já estabeleceu metas a esse respeito, para que os bancos se adequem em dois anos. A principal delas rege que dois terços dos empréstimos totais sejam lastreados em depósitos à vista e empréstimos nos mercados com duração mínima superior a um ano ("The Economist", 3 de setembro). Outras providências estão a caminho e deverão governar a ação de bancos europeus e americanos. Em épocas de prosperidade, eles terão de guardar mais capital, retirando fôlego de eventuais bolhas de crédito, que prosperam nos períodos de crescimento econômico. O índice de alavancagem e a exigência de capital próprio acionário em relação ao total de ativos devem subir.

A farra da securitização de títulos, que permitiu aos bancos esconderem bilhões de dólares fora de seus balanços, está obviamente na alça de mira dos bancos centrais. Nos Estados Unidos, a nova legislação proposta obriga os bancos a dar maior transparência às informações e a colocar dinheiro próprio na jogada: 5% de qualquer negócio, sem possibilidade de protegê-lo por meio do hedge. O cerco se fecha com a definição clara de funções dos órgãos de supervisão nos Estados Unidos, uma vigilância transnacional na zona do euro, hoje pulverizada por BCs e órgãos nacionais, e uma supervisão global reunindo as principais autoridades monetárias dos países ricos e emergentes.

A temporada de caça aos bancos não para aí. A União Europeia e os Estados Unidos estão em guerra com os paraísos fiscais e já conseguiram quebrar parte da dura couraça do sigilo suíço, o mais resistente de todos os tempos. Em 2011, virão sanções aos países que se recusarem a prestar uma lista razoável de informações sobre clientes e operações financeiras. As agências de classificação de riscos terão uma vida mais dura e serão supervisionadas, segundo a proposta de legislação americana. Depois que deram notas altíssimas para títulos de baixa reputação, as autoridades reguladoras resolveram criar normas que tolham o evidente conflito de interesses e as tornem responsáveis por seus julgamentos. Isso já começa a acontecer. Um juiz americano negou pedido de várias delas para escapar de um processo capitaneado pelo Abu Dhabi Bank Corporation, que quer se ressarcir dos prejuízos causados com a compra de "notas estruturadas" batizadas com ótimos "ratings".

Os bônus milionários a executivos, ao que tudo indica, minguarão. As propostas atuais vão na direção de esticá-los por vários anos, vinculá-los a resultados de longo prazo e ampliar a fatia de ações na remuneração. Lord Turner, claro, não os tem em alta estima. "Esses níveis assombrosos de pagamento não são uma medida da eficiência dos mercados ou do brilho individual, mas uma falha de mercado que dá largas rendas a um pequeno grupo de participantes."

Se tudo der certo, os grandes bancos globais se parecerão mais com os do Canadá, que passaram ilesos pela crise. Serão menos "criativos" e internacionalizados, terão custo de capital um pouco maior, mas serão mais seguros e confiáveis. Nenhum problema nisso: o Canadá tem há muito tempo um dos melhores índices de desenvolvimento do mundo.