Título: A cana resgata a agenda do desenvolvimento rural
Autor: Silva , José Graziano
Fonte: Valor Econômico, 17/09/2009, Opinião, p. A16

A cana é conhecida como o zebu da agricultura brasileira: vai bem em qualquer lugar e não respeita cercas que limitem sua expansão. Mas é justamente em torno dessa cultura que se entrelaçam hoje iniciativas de inestimável importância para o debate do desenvolvimento rural.

O zoneamento agroecológico da cana-de-açúcar no Brasil é uma das faces mais importantes dessa retomada. A afoiteza de uns e o interesse protecionista de outros carimbou nas promessas dos combustíveis verdes a sombra de um antagonismo inconciliável com a segurança alimentar. Em 2008, no auge da especulação financeira com os preços das matérias-primas, não foram poucos a atribuir o encarecimento da comida a uma rota de colisão entre estômagos vazios e veículos sedentos por biocombustíveis.

Contra a sustentabilidade do etanol brasileiro depunham ainda testemunhos de um avanço devastador sobre novas fronteiras que levaria à ocupação da Amazônia pela cana, sucedendo o zebu. As medidas tomadas agora pelo governo Lula levantam cercas e criam salvaguardas ambientais e sociais que equacionam sua expansão.

O Brasil não permitirá mais a instalação de novas usinas ou plantações de cana em áreas de vegetação nativa, sejam elas na Amazônia, no Pantanal, na caatinga, no Cerrado ou em remanescentes da Mata Atlântica.

O crédito agrícola funcionará como trava seletiva para impedir o avanço da agroenergia em áreas ocupadas por alimentos. A expansão canavieira se dará em relevos planos que favoreçam a mecanização, viabilizando a extinção das queimadas até 2017, conforme Medida Provisória que acompanha as diretrizes do zoneamento.

Somando-se tais restrições às unidades de conservação já existentes e aos territórios indígenas demarcados, a cana-de-açúcar fica vetada em mais de 80% da área total do país Ainda assim preserva amplo horizonte de expansão, já que a parcela da lavoura destinada ao etanol hoje ocupa menos de quatro milhões de hectares, cerca de 1% da área agricultável do pais.

A iniciativa brasileira guarda estreita sintonia com medidas de ordenamento preconizadas pela FAO desde 2007, indispensáveis à harmonia entre novas e velhas demandas que o Século XXI coloca para o campo: a alimentar, a social, a ambiental e a energética. E isso foi referendado em 2008, na Conferência de Alto Nível sobre Segurança Alimentar (http://tr.im/biohlc).

A segunda iniciativa que reforça a agenda do desenvolvimento rural contempla a melhoria das relações de trabalho. Trata-se neste caso de um resgate histórico de direitos obtidos a partir da célebre greve dos boias-frias de Guariba (SP), em 1984. Em 15 de maio daquele ano cinco mil boias-frias invadiram cidades do noroeste paulista, entraram em choque com a polícia e atearam fogo em plantações para cobrar melhores condições de alojamento, alimentação, saúde, transportes e, sobretudo, limites a uma das mais estafantes jornadas de trabalho ainda existentes. As vitórias consolidadas no Acordo de Leme, em 1986 - que o atual presidente da República acompanhou pessoalmente então como líder sindical - custaram dois mortos e dezenas de feridos. Não foi suficiente para que elas saíssem do papel.

Aquelas conquistas reencontraram agora ambiente propício para renascer na busca de legitimidade internacional para a agroenergia brasileira. Um acordo nacional (http://tr.im/cananac) firmado em julho deste ano entre representantes dos cortadores de cana, empresários do setor e o governo foi o primeiro passo nessa retomada. Um ano de negociações conduzidas por determinação do presidente Lula pelo secretário-geral da Presidência, Luiz Dulci, soldou a legitimidade de um novo fórum tripartite que já tem a adesão de quase 80% das usinas e pode - ao lado do zoneamento - figurar como um dos mais importantes embaixadores do etanol brasileiro no comércio mundial.

A parte do Estado nessa equação inclui a recolocação da mão-de-obra dispensada pelo avanço da colheita mecânica. A máquina fortalece a dimensão ambiental dos biocombustíveis, ao custo de 100 empregos a menos por colheitadeira. Sem isso, o destino dos desempregados imitará o ciclo da matéria-prima: o esmagamento, bagaço e queima ou descarte.

O planejamento de longo prazo das políticas agrícolas surge, assim, como terceira perna indispensável à sustentação das anteriores. Sua oportunidade no caso do agronegócio brasileiro decorre, felizmente, do sucesso, e não do fracasso produtivo. Ao ampliar ganhos de escala por hectare, o setor também libera espaços, entre outras coisas, para políticas de zoneamento ambiental como a adotada agora pelo Brasil.

O país investiu fundos públicos para que isso acontecesse. Incentivos fiscais e ganhos de pesquisa foram transferidos à indústria do álcool - cerca de US$ 16 bilhões desde o início do Pró-Álcool, em 1975 - para que hoje ela pudesse extrair quatro vezes mais etanol por hectare de cana do que no início do programa.

O momento, portanto, é encorajador para novos avanços em outras áreas e mesmo na da cana, que ainda carece, por exemplo, de um marco regulador das relações entre usinas e fornecedores.

O Estatuto da Lavoura Canavieira, herança de Getúlio Vargas, previa uma participação de 60% de cana de fornecedores autônomos nas usinas. O sistema começou a caducar, com o Pro-Álcool impondo a necessidade de expandir rapidamente a produção. Nos anos 90, com a extinção do Instituto do Açúcar e Álcool (IAA), essa determinação caiu de vez em desuso.

Que 25 anos depois da Greve de Guariba se reafirme os compromissos assumidos naquela ocasião é um sinal dos novos tempos, mas também um alerta. Assim como tem muito zebu "varador de cerca", tem muito usineiro que não cumpre acordos. E isso pode comprometer não só a figura do presidente, maior avalista do novo acordo, mas o futuro do etanol brasileiro como o combustível verde do Século XXI.

José Graziano da Silva é representante Regional da FAO para América Latina e Caribe.