Título: Pontos baixos da saga do algodão brasileiro na OMC :: Luiz Ribeiro Salles e Marina A. Egydio de Carvalho
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 23/09/2009, Opinião, p. A14
A decisão da Organização Mundial do Comércio, sobre o direito à retaliação, autorizou sanções que representam o segundo maior valor absoluto da história da Organização. Mediante condições, reconheceu o direito de o Brasil executar a "retaliação cruzada" sobre serviços e direitos de propriedade intelectual afeitos aos Estados Unidos. Entretanto, do ponto de vista jurídico, ao contrastarmos a última decisão com certas decisões anteriores, algumas importantes batalhas subjacentes à arbitragem foram desfavoráveis aos interesses do governo.
Comecemos pelo valor da retaliação, que deve ser atualizado a cada ano com base em fórmula que considera os efeitos dos subsídios ilegais sobre o Brasil. A diferença entre o valor proposto pelo Brasil (US$ 2,7 bilhões) e o valor concedido para o ano de 2007 (com base em números do ano de 2006, equivalente a US$ 294 milhões) tem dois componentes principais que podem restringir a possibilidade de retaliação contra subsídios na OMC.
Primeiro, os árbitros não permitiram a inclusão de certos subsídios proibidos que já haviam sido repelidos pelos EUA. Contudo, esses subsídios foram retirados mais de um ano após o prazo determinado pela OMC.
Segundo, os árbitros interpretaram que a referência apropriada para o cálculo da retaliação, no caso dos subsídios proibidos dos programas GSM, seria o impacto comercial dos subsídios sobre os produtos brasileiros. Os números propostos pelo Brasil referiam-se ao benefício aos agricultores americanos, medido em termos do mercado global. Os EUA propuseram que a referência seria o custo líquido do programa para o governo, ajustado para refletir os efeitos do subsídio sobre o Brasil.
A decisão do painel de concentrar-se nos efeitos adversos do subsídio proibidos apenas sobre os produtos brasileiros afasta-se da linha jurisprudencial que prevaleceu até então. Nos casos envolvendo a Embraer e a Bombardier e no caso envolvendo as "foreign sales corporations" americanas, os árbitros entenderam apropriado o cálculo com base no total do subsídio, sem restringi-lo à participação comercial do país vencedor. E destacaram que os subsídios em questão eram proibidos e que o objetivo da retaliação é induzir a sua retirada completa.
Além disso, sublinharam a diferença textual entre sanções aos subsídios proibidos ("contramedidas apropriadas") e aos acionáveis ("contramedidas comensuradas com o grau e a natureza dos efeitos adversos determinados"). No caso do algodão, minimizou-se a diferença entre os institutos.
Em relação à forma da retaliação, a decisão também impacta os interesses do governo. O Brasil defendeu que a retaliação contra subsídios poderia ser executada em qualquer acordo abrangido pela OMC. O painel confirmou que tal retaliação submete-se aos princípios e procedimentos gerais estabelecidos no artigo 22.3 do Entendimento sobre Solução de Controvérsias. O artigo 22.3 dispõe que o vencedor de uma disputa relativa ao comércio de bens só pode retaliar em serviços ou propriedade intelectual após determinar que não é "praticável" ou "efetivo" retaliar em bens e que as "circunstâncias são sérias o suficiente". Uma vez que a proposta brasileira original fora superestimada, o painel decidiu que o Brasil violou os princípios e procedimentos do artigo 22.3. E, ao fazê-lo, conferiu interpretação restritiva ao elemento "efetividade", dificultando o recurso à retaliação cruzada.
Apesar de ter rejeitado a proposta original do Brasil, o painel reconheceu o direito de o país adotar a retaliação cruzada, desde que o valor da retaliação para um dado ano, calculado segundo uma fórmula estabelecida na decisão, exceda um valor mínimo atualizável de importações dos Estados Unidos. O reconhecimento deste direito é um ponto alto da decisão para o governo. Todavia, a efetivação do direito dependerá dos valores dos subsídios eventualmente concedidos e dos fluxos de comércio bilaterais. Comparada às decisões anteriores em casos trazidos pelo Equador e por Antígua e Barbuda, onde tais exigências não foram impostas, a decisão do algodão aponta diferença de tratamento entre países em desenvolvimento menores e o Brasil. O governo brasileiro, porém, tem defendido que os países em desenvolvimento sejam tratados como bloco.
A necessidade de cálculos anualizados para a efetivação da retaliação cruzada será um complicador para o interesse de alguns setores do governo e da indústria em executar tal retaliação. Arquitetar e executar um programa de retaliação é uma aventura complexa e que poucos países experimentaram. Caso o programa brasileiro envolva direitos de propriedade intelectual, por exemplo, medidas meticulosas de planejamento e execução precisarão ser tomadas para que o programa seja compatível com a nossa legislação e com a autorização da OMC.
Deixando de lado, por hora, os impactos negativos de eventuais medidas no ambiente de negócios no país (aspecto fundamental), devido à obrigação de atualização anual dos valores, governo e operadores privados terão reduzida segurança sobre a renovação ou manutenção da forma da retaliação. Se esse aspecto não for controlado pelo governo, implicará maior instabilidade e imprevisibilidade na aplicação da retaliação.
Em conclusão, a interpretação do painel em relação à retaliação contra subsídios limitou o seu valor. Além disso, ao propor a obrigatoriedade de atualização anual para fins de aplicação da retaliação cruzada, a decisão pode dificultar a elaboração e execução do programa de retaliação.
De forma geral, portanto, a decisão acentua o desafio do governo: equilibrar o interesse em retaliar para estimular a retirada dos subsídios com os múltiplos interesses dos diversos atores domésticos potencialmente afetados.
Luiz Eduardo Ribeiro Salles é advogado do Grupo de Comércio Internacional do escritório Barretto Ferreira, Kujawski, Brancher e Gonçalves (BKBG)...
Marina Amaral Egydio de Carvalho é professora de Direito Internacional no curso de Relações Internacionais da ESPM e advogada do Grupo de Comércio Internacional do mesmo escritório.