Título: Crise que não veio marca a eleição alemã
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Fonte: Valor Econômico, 23/09/2009, Especial, p. A16

Um mês atrás, Klaus Schüler e Karl-Josef Wasserhövel achavam que estava tudo nos conformes. Eles podem vir de extremos opostos do espectro político, mas havia consenso entre os estrategistas de campanha dos dois principais partidos alemães no que diz respeito a qual seria o tema decisivo na eleição geral: a economia.

Trabalhando em suas QGs de campanha de estilo similar, em Berlim - um na região das embaixadas, e outro num bairro mais operário - Schüler e Wasserhövel conceberam campanhas construídas em torno de proposições antagônicas sobre a gestão da economia. Para Schüler, coordenador de campanha da União Democrata Cristã (CDU), da premiê Angela Merkel, os eleitores no país mais populoso da Europa querem ser convencidos de que "não estamos poupando nenhum esforço para tirar a economia da crise". A mensagem central de Wasserhövel em nome de seus patrão, Frank-Walter Steinmeier, o desafiante do Partido Social Democrata (SPD), era de estimular um Estado atuante na proteção aos empregos e em "coesão social".

Mas, agora, ambos defrontam-se com um problema inesperado. Há poucos dias da eleição, a crise que a CDU e o SPD colocaram no centro de seus roteiros eleitorais cuidadosamente delineados está se recusando a desempenhar o papel que lhe foi atribuído. A mais brutal recessão na história do pós-guerra alemão, ao que parece, acabou antes de a maioria dos alemães terem tido a chance de se dar conta do que estava acontecendo.

"Devo admitir que ficamos surpresos com a evolução das coisas", diz Thomas de Maizière, chefe de gabinete de Merkel. "Uma lição que aprendemos é que não devemos acreditar em demasia nas previsões econômicas."

Isso pode ter implicações decisivas para a eleição deste domingo. A ameaça imediata de crise está, aparentemente, diminuindo, e com isso já há sinais de uma mudança nas atitudes do eleitorado.

Pesquisas de intenção de voto divulgadas nas últimas semanas revelaram diminuição do apoio tanto à CDU como ao SPD, que durante quatro anos governaram juntos, na acidentada "grande coalizão", liderada pela CDU.

Pelos números das pesquisas sugerem que a coalizão preferencial da CDU, com os liberais do FDP, partidários da economia focada no livre mercado, não terá a maioria necessária. As pesquisas também mostraram, em graus diversificados, um crescimento do apoio à esquerda - uma combinação de dissidentes do SPD e o velho ex-partido comunista da Alemanha Oriental, hoje chamado Partido de Esquerda.

Se essa tendência persistir, Merkel poderá não conseguir uma vitória inequívoca. A maior economia europeia teria assim pela segunda vez seguida um Parlamento dividido. O vínculo entre estabilização econômica e o crescente apoio à esquerda pode parecer, à primeira vista, remoto, mas uma análise dos acontecimentos nos últimos meses mostra que ele é real e ameaçador para o establishment político.

Seis meses atrás, quando o SPD e a CDU davam os toques finais em seus planos de batalha eleitoral, os estrategistas presumiram que o desemprego começaria a crescer muito no início do segundo semestre, afetando adversamente as famílias em todo o país exatamente no momento em que a campanha entraria em sua fase decisiva.

A tática do SPD foi reforçar as credenciais econômicas de Steinmeier, propondo um gabinete repleto de pesos-pesados econômicos, entre eles Peer Steinbrück, atual ministro das Finanças, e Harald Christ, um financista milionário. Steinmeier, que é ministro de Relações Exteriores, procurou também enfatizar sua ênfase doméstica com um programa econômico para 10 anos, prometendo criar 4 milhões de empregos mediante investimentos em tecnologia ambiental, engenharia de software e serviços de alto valor agregado, como na área de saúde.

A CDU estava mais despreocupado. As pesquisas mostravam, de longa data, que o eleitorado considera o centro-direita mais competente na condução econômica em tempos de crise. Em vista da incerteza reinante, julgaram os assessores de Merkel, os eleitores gravitariam para a atual premiê.

Por isso, Merkel concentrou-se em propagandear seu desempenho até agora, como a criação de quase 2 milhões de empregos em quatro anos, o socorro aos bancos no país e um pacote de estímulo fiscal de US$ 116 bilhões. Ela também prometeu reduções no imposto de renda e renovado combate ao déficit orçamentário - sem explicitar como conciliaria esses dois objetivos.

As coisas, porém, não andaram conforme os planos. Quando Berlim voltou das férias de verão, neste mês, preparada para uma batalha eleitoral contra um pano de fundo econômico comparável ao da década de 30, descobriu que a crise não tinha se concretizado e que seria improvável que isso ocorresse antes das eleições.

De um ponto de vista do eleitorado, o desaquecimento econômico, na verdade, não aconteceu - ainda. Após quatro trimestres de queda do Produto Interno Bruto (PIB), a maior economia europeia viveu um retorno ao crescimento no segundo trimestre. O PIB cresceu 0,3% nos três meses até junho, numa recuperação mais rápida e mais vigorosa do que quase todos os economistas tinham previsto.

Crucialmente, embora a contabilidade de lucros e prejuízos da companhias tenha sofrido um choque brutal - o setor de engenharia alemão deverá registrar seu primeiro prejuízo consolidado em toda a história neste ano - os trabalhadores praticamente não foram afetados, graças à decisão governamental de conceder subsídios a trabalhadores em meio período. Os subsídios permitiram às companhias manter seus funcionários durante a recessão, o que explica porque o nível de emprego permaneceu fundamentalmente estável apesar da abrupta queda na produção.

A não-ocorrência de uma enorme alta no desemprego, associada a um aumento da renda disponível (em consequência de generosas renegociações salariais firmadas em 2008), inflação baixa, aumento nos benefícios de seguridade social, cortes de impostos e um esquema de renovação da frota de automóveis no valor de ¿ 5 bilhões, deram sustentação ao consumo. Com efeito, a maioria dos alemães, empregados ou não, está efetivamente em melhor condição neste mês do que doze meses atrás.

Os economistas acreditam que o desemprego começará a crescer mais rapidamente nos meses restantes deste ano, à medida que as companhias foram acabando com seus esquemas de trabalho em meio período e outras ficarem insolventes. Existem também preocupações quanto à disponibilidade de crédito, apesar das tentativas do governo de incentivar os empréstimos.

Mas a tendência das encomendas às empresas, dados sobre exportações e pesquisas de confiança apontam para inquestionável melhora econômica. Também promissor é o fato de que gastos públicos adicionais em infraestrutura motivados pela crise apenas agora começaram a repercutir na economia.

Então, por que esse favorável desenrolar dos acontecimentos revelou-se um revés para as duas pessoas - Merkel e Steinmeier - que podem legitimamente dizer que dominaram a crise?

À primeira vista, parece que Merkel deveria estar colhendo as vantagens políticas da retomada. Embora a origem do esquema de trabalho em meio período seja disputada por SPD e CDU, nos últimos quatro anos o eleitorado creditou sistematicamente à premiê os êxitos do governo.

A decisão de Merkel de subscrever uma reestruturação da Opel, a subsidiária alemã da General Motors, agora sob novo controle proprietário - Berlim e a fabricante automobilística americana finalmente firmaram este mês um acordo sobre o negócio - poderá também cristalizar a sua imagem de eficiente gerenciadora de crises.

Merkel deverá também beneficiar-se, no plano doméstico, de sua melhorada imagem no exterior. Quando o sistema financeiro mundial chegou perto do colapso, no segundo semestre do ano passado, ela sofreu críticas da França, dos EUA e do Reino Unido por sua reação lenta. O que à época sugeriu hesitação está começando a parecer sabedoria.

"Suponho que o que a opinião pública está pensando é que, se essa é a pior crise desde a Grande Depressão, então o governo deve estar fazendo um trabalho bastante bom", afirmou um assessor sênior de Merkel.

A taxa de aprovação pessoal de Merkel mostra que ela é, de longe, o nome mais popular entre os políticos alemães. "O trunfo de Merkel é que ela passa a sensação de estar no comando e de se importar com as pessoas", argumenta Manfred Güllner, presidente da empresa de pesquisas Forsa. Mas, adverte ele, as melhoras nas perspectivas econômicas podem estar alterando as prioridades dos eleitores.

O risco, dizem ele e outros analistas, é que, à medida que a economia reaquece, os alemães passem a se preocupar menos com seus destinos pessoais e procurem se vingar pela ocorrência da crise - em vez de querer se proteger dela. O retorno de um forte sentimento antiempresarial, alimentado pela recente divulgação, por exemplo, das bonificações pagas por bancos alemães aos seus executivos, poderá implicar dificuldades para a CDU e o FDP, dois partidos tidos como mais ligados ao setor privado.

Como ressalta Gesine Lötzsch - que obteve uma das primeiras cadeiras do Partido de Esquerda no Bundestag (o Parlamento alemão) -, o crescente foco em quem acabará pagando a conta do socorro ao sistema bancário poderá beneficiar candidatos de sua faixa do espectro político.

"Alguém vai ter de pagar por isso", diz ela, falando em seu QG de campanha, num conjunto residencial de arquitetura pesada no leste de Berlim. "Haverá um aumento no imposto sobre o consumo? Haverá cortes nos valores das aposentadorias ou enxugamento na assistência médica? É nisso que as pessoas estão interessadas".

Klaus Zimmermann, do instituto de pesquisas econômicas DIW, de Berlim, comenta que "o debate político sempre se coloca entre os dois extremos: igualitarismo e eficiência. Agora, estamos nos movendo cada vez mais rumo ao polo do igualitarismo".

Essa mudança de postura, de receosa para vingativa, pode efetivamente estar por trás desse recente avanço da esquerda, que até pouco tempo atrás não se beneficiara da atual crise do capitalismo. Por sua vez, o SPD, mais moderado, após mais de uma década no governo, está mal posicionado para se beneficiar de um sentimento mais revoltado da opinião pública.

Num comentário revelador, Inge Müller, uma funcionária pública de 42 anos que esteve num comício de Steinmeier em Colônia, na semana passada, disse: "Ficou muito difícil distinguir o PSD da CDU. Quatro anos atrás nós tínhamos uma alternativa, mas a grande coalizão aproximou demais os dois partidos".

A hipótese de uma revitalização mais robusta, de última hora, da esquerda justifica-se em vista do resultado das eleições regionais nos Estados de Sarre e Turíngia, duas semanas atrás. Nos dois, a CDU sofreu derrotas de dois dígitos, o SPD saiu enfraquecido - e os ex-comunistas do Partido de Esquerda conquistaram a melhor votação de sua história (27,4% na Turíngia) e seu melhor resultado em um Estado ocidental (21,3% em Sarre).

Um resultado similar em nível nacional negaria à CDU e ao FDP a maioria de centro-direita almejada por Merkel - uma dianteira que, até poucas semanas atrás, parecia estar ao seu alcance.

A eleição ainda não está perdida para a CDU e o FDP. A recente guinada na opinião do eleitorado pode estar chegando tarde demais para resultar em mudanças efetivas. Além disso, a crescente volatilidade do comportamento eleitoral proporciona a Merkel uma derradeira oportunidade de se contrapor a essa tendência rumo à esquerda.

"Uma surpresa nas eleições regionais foi que o eleitorado está se movendo entre os campos da esquerda e da direita, e não apenas entre partidos de um mesmo campo", diz Matthias Moehl, diretor do election.de, um site de análises eleitorais. Isso, diz ele, poderá persuadir a CDU a enfatizar os aspectos "sociais" de sua campanha. Merkel já vem tocando uma campanha perceptivelmente mais centrista do que quatro anos atrás. Nas palavras de um importante assessor da premiê: "Para que ela consiga a maioria que pretende, necessitará apoio do voto volátil, com os dos simpatizantes do SPD e dos Verdes. Se isso será suficiente, veremos. Mas não creio haver outra maneira". Imprimir Compartilhar| Especial: