Título: Não mata, mas engorda
Autor: Eduardo de Assis , Luis
Fonte: Valor Econômico, 21/09/2009, Opinião, p. A14

O PIB do segundo trimestre voltou a crescer e saímos da recessão. A chance dele crescer este ano é bastante razoável. Podemos ter um aumento do PIB parecido com o de 1998 (0,04% ) ou 1999 (0,25%) Nada mal para uma crise épica. Foi mais do que uma "marolinha", mas nada de novo para os nossos padrões. Uma gripe comum, piedosa, em tempos de epidemia mundial. Haverá, certamente, quem diga que este desempenho passável atesta a solidez incontestável da economia brasileira diante das intempéries. Os mais entusiasmados poderão achar na literatura de auto-ajuda corporativa alguma citação lembrando que uma crise sempre nos fortalece. Um olhar mais atento , no entanto, recomendará mais cautela.

Em primeiro lugar, esta crise não é nossa. Ao contrário das crises da dívida externa dos anos 80 e 90, desta vez o epicentro foi nas próprias economias desenvolvidas. A crise hoje tem uma dimensão histórica porque combina uma tendência congênita do sistema financeiro a engendrar fases de desestabilização com políticas feitas pela mão do homem que, por várias razões (entre as quais a crença de que a primeira assertiva é falsa) exacerbaram as oscilações endógenas dos mercados. Simplificadamente, estamos falando de quatro ingredientes fundamentais: (i) um longo período de juros extremamente baixos; (ii) uma ampla desregulamentação bancária ; (iii) uma sofisticação crescente dos produtos derivativos e (iv) um aumento especulativo nos preços dos ativos, nomeadamente imóveis, que no entanto, não estimulou os bancos centrais a elevarem os juros. O resultado foi a deflagração de um ciclo especulativo de crédito, auto-estimulante e de efeitos cumulativos: a sofisticação dos derivativos permitiu a diluição do risco, que aumentou a oferta de crédito, que aumentou a demanda por ativos, que elevou o preço das garantias, que reduziu o risco, que aumentou a demanda por derivativos, que elevou o crédito, que estimulou os preços etc.

Ora, não é difícil perceber que nada disso ocorreu no Brasil. Nem remotamente tivemos nada parecido com o mercado "sub-prime". A securitização de dívidas entre nós é incipiente, assim como é pequena a sofisticação no mercado de derivativos. Da mesma forma, não houve corrida especulativa a imóveis. Sequer temos um índice abrangente que meça os preços desses ativos, algo muito distante que acontece nos mercados desenvolvidos onde há produtos derivativos lastreados nesses índices e a bolha especulativa levou a casos em que, no exemplo de Londres, os preços dos imóveis chegaram a representar doze vezes a renda líquida anual do morador - não temos também essa estatística aqui, mas a evidência anedótica sugere que estamos longe dessa bizarrice. Também o banco central não comprou a idéia "moderna" da auto-regulamentação dos mercados. Aqui as farmácias vendem pilhas, mas só os bancos fazem "banking", uma platitude que demonstrou ser correta. Por fim e de forma mais evidente, não tivemos, claro, um longo período de juros muito baixos. Antes ao contrário, como até as galinhas sabem.

A crise não é dos países emergentes, mas nos cobra sacrifícios. Regra geral, esse preço varia na proporção do grau de integração de cada país à economia mundial. O Brasil, seja por suas características estruturais, seja por suas escolhas, sempre foi uma economia mais fechada. O coeficiente de abertura (medido pela soma das exportações e importações em relação ao PIB) do Brasil em 2008 foi o mais baixo da América Latina (23,6%), em claro contraste com a economia mexicana, a economia mais aberta da região (55,3%).

Não por coincidência, o produto do México deve despencar cerca de 6% em 2009. Também a relativa dispersão do destino das exportações nos ajuda. Enquanto o México exporta 80% de sua pauta para o mercado americano, as nossas se espalham pelo mundo. As remessas internacionais, por sua vez ,também são pequenas no caso brasileiro., representando 0,3% do produto, contra índices que giram em torno de 20% do PIB em países da América Central, também fortemente afetados pelas repercussões da crise - com o agravante de que parcela significativa dos imigrantes dessa região trabalha, ou trabalhava, justamente na construção civil nos EUA. Também a diversidade da estrutura de capital do sistema bancário nos ajudou a suportar o peso da crise.

O tamanho do mercado viabilizou um modelo tripartite, raro no cenário mundial, e garantiu significativa participação para os bancos públicos e privados nacionais. Em vários países emergentes, o canal de comunicação com a crise se deu pelas dificuldades de "funding" para bancos estrangeiros diretamente expostos à crise em seus países de origem. Também a queima de riqueza aqui foi menor. A bolsa brasileira perdeu quase metade de seu valor entre maio e outubro de 2008, mas o fato é que os ativos financeiros no Brasil se concentram em títulos de renda fixa de curto prazo, legado de anos de juros muito altos. Por tudo isto, seria surpreendente e difícil de explicar se a crise aqui tivesse uma proporção avassaladora.

Daí a concluir que a crise nos fortalece, no entanto, vai um grande passo. As medidas compensatórias de política econômica afetaram as finanças públicas de forma preocupante. A dívida líquida do setor público passou de 38,8% em dezembro para mais de 44% em julho último.

Da mesma forma, o déficit nominal no mesmo período saltou de 2% para 3,4% do PIB. As despesas do governo federal crescem a uma taxa anual de 12%, enquanto as receitas caem. A arrecadação voltará a crescer com a recuperação da economia e o fim das benesses fiscais, mas grande parte do aumento dos gastos é permanente. Puxa-se uma vaca com uma corda no pescoço, mas empurrá-la de volta é muito difícil. Da mesma forma, os bancos públicos expandiram extraordinariamente seus empréstimos, em contraste com o conservadorismo do setor privado. O tempo, pouco tempo, dirá se a ousadia valeu a pena. Por tudo isso, o que fica é um setor público ainda maior, mais difícil de ser manejado e sedento de recursos. A crise não nos matou. Diz a sabedoria popular que o que não mata engorda. Faltou dizer que engordar faz mal.

Luis Eduardo de Assis economista, foi Diretor de Política Monetária do Banco Central e professor do Depto de Economia da PUC-SP e FGV-SP. É diretor regional -America Latina - do grupo HSBC.