Título: Coutinho sugere consolidação do setor siderúrgico
Autor: Romero , Cristiano
Fonte: Valor Econômico, 22/09/2009, Brasil, p. A3

A siderurgia brasileira precisa sair da inércia e adotar uma nova estratégia, com vistas a crescer e conquistar o mundo. É um setor da economia brasileira fortemente exportador, mas que ainda não possui uma empresa sequer de porte internacional. A avaliação é do presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Luciano Coutinho, principal formulador das políticas de desenvolvimento do governo Lula.

"A siderurgia brasileira está devendo ao país uma atuação mais afirmativa", disse Coutinho nesta entrevista ao Valor. Ele defendeu a Vale, criticada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva por não investir em projetos siderúrgicos no Brasil. Segundo o presidente do BNDES, a Vale tem parcerias com empresas estrangeiras, porque "as nacionais não se apresentam".

"Gostaria de fazer essa ponderação e de convidar a siderurgia brasileira a adotar uma postura estratégica nova", provocou Coutinho, sugerindo que o setor necessita passar por um processo de consolidação, rejeitado pelos acionistas das companhias que atuam no setor. O presidente do BNDES defendeu a criação, com ajuda do governo, de empresas campeãs nacionais em várias áreas. "Eu diria que o Brasil precisa ter campeãs mundiais. Pelo seu peso, a economia brasileira tem condições inigualáveis de competitividade em algumas cadeias."

Coutinho previu que, para que o Brasil possa crescer sem inflação nos próximos quatro anos, a taxa de investimento da economia terá que chegar a 25% do PIB - hoje, está em 15,71%. Ele explicou que, para atender a essa necessidade de investimento, o BNDES está dobrando de tamanho e, por essa razão, precisa contar com novas fontes de financiamento, tema que já está sendo tratado, inclusive, com o presidente Lula. Ele contou que o plano é entregar ao sucessor de Lula, em 2011, um banco maior e com fontes asseguradas de recursos.

Valor: O BNDES tem ajudado a consolidar algumas empresas e setores da economia, como os de celulose e telefonia. Está por trás disso a ideia de que o país precisa ter campeãs nacionais?

Luciano Coutinho: Eu diria que o Brasil precisa ter campeãs mundiais. Pelo seu peso, a economia brasileira tem condições inigualáveis de competitividade em algumas cadeias. O país já desenvolveu empresas muito competentes. É natural a sua projeção no espaço global. Mas o Brasil dispõe, relativamente ao seu tamanho e potencial, de poucas empresas de classe mundial. É absolutamente natural que, na expansão dessas empresas, o BNDES, em condições de mercado, possa apoiar essas oportunidades. Obviamente, não há nada de artificial nesse processo, uma vez que ele corresponde ao desenvolvimento de competências inegáveis. Não há aqui um processo artificial de fabricação de empresas. O que há é que empresas que se revelaram altamente competitivas são apoiadas pelo BNDES. Está na política industrial do governo permitir o desenvolvimento de atores globais brasileiros, com escala mundial.

Valor: Em que setores?

Coutinho: Naqueles onde o país é competitivo. Tínhamos empresas mundiais que cabiam nos dedos de uma mão. Agora, talvez caibam em duas... Ainda é muito pouco para o tamanho do Brasil. Essas operações (de apoio à consolidação de empresas) são conduzidas em geral pela BNDESPar. Há uma preocupação muito grande em associar essas operações a avanços expressivos de governança e gestão e de observação da responsabilidade social e ambiental. É uma política explícita.

Valor: O Brasil é o maior produtor de minério de ferro do mundo, mas não é o maior de aço. Nossas empresas são pequenas se comparadas às concorrentes mundiais. O presidente Lula se queixa da atuação da Vale, que não agrega valor à produção de minério. Este é um setor elegível para essa política?

Coutinho: A siderurgia brasileira está devendo ao Brasil uma atuação mais afirmativa. É uma grande exportadora, mas não produziu, até o momento, empresas de porte internacional. Quanto à Vale, seus projetos siderúrgicos têm parcerias com empresas estrangeiras porque as nacionais não se apresentam. Gostaria de fazer essa ponderação e de convidar a siderurgia brasileira a adotar uma postura estratégica nova.

Valor: Não são os custos de produção, por causa da alta carga tributária e de gargalos na infraestrutura, que inibem os avanços?

Coutinho: Não são problemas insuperáveis. O momento é difícil, porque existe alta capacidade ociosa no mundo inteiro. Só recentemente os altos-fornos começaram a ser ligados. Existe uma crise na siderurgia americana, enfim, há oportunidades que poderiam estar sendo aproveitadas.

Valor: O BNDES é um banco de R$ 60 bilhões, mas tem uma carteira de empréstimos superior a R$ 100 bilhões ao ano. Como essa diferença será coberta no curto e no longo prazos?

Coutinho: Esta é uma questão complexa, que depende de duas condições. A primeira é quanto a economia brasileira investirá ao longo dos próximos cinco anos. A segunda é quanto dessa necessidade de investimento poderá ser adequadamente financiada pelos mercados de crédito e de capitais. O país está preparado para um ciclo de desenvolvimento duradouro, no qual a taxa agregada de poupança e de investimento da economia subirá.

Valor: Para quanto?

Coutinho: Talvez seja necessário chegar a 25% do PIB ao longo de quatro anos, o que permitirá que a aceleração do crescimento não seja inflacionária. Disso decorrerá uma necessidade de investimento numa configuração em que a infraestrutura terá um peso significativo e talvez crescente. O investimento de prazos longos e carências adequadas precisará de suporte numa escala crescente. De outro lado, está a intensidade com que o mercado privado poderá oferecer crédito de média maturidade e em que escala poderá oferecer capital, equity ou formas híbridas de crédito para apoiar o crescimento da economia.

Valor: Quais serão, na sua avaliação, a intensidade e a escala?

Coutinho: Tenho uma visão otimista quanto à possibilidade de desenvolvimento do mercado de capitais. O Brasil tem um mercado sofisticado e bem regulado. A redução da taxa de juros criará um novo cenário no qual a renda fixa perde atratividade e abre espaço para o desenvolvimento de novos instrumentos financeiros. O sistema de crédito bancário, se receber estímulos adequados de regulação e de tributação, poderá se mover para prazos mais longos de crédito, mas isso dependerá também de uma mudança de mentalidade do investidor brasileiro em direção a prazos mais longos.

Valor: O senhor se refere ao investidor institucional ou ao geral?

Coutinho: Geral. É importante que o Brasil tenha o perfil de um sistema financeiro normal, no qual a rentabilidade dos investimentos esteja positivamente correlacionada com o prazo e a liquidez. Quanto mais alta a liquidez e mais curto o prazo, menor deveria ser a remuneração dos ativos. Esta anomalia brasileira, que durou quase três décadas, é um empecilho à migração da poupança para perfis de maior maturidade. Estamos diante de um momento de transição em que temos a chance de estabelecer um patamar de juros mais baixos e de dar um passo significativo no desenvolvimento financeiro do país. A questão do papel do BNDES vai ser respondida nesse contexto.

Valor: Qual deve ser esse papel?

Coutinho: Se admitirmos que as escalas do investimento, da economia e dos grupos empresariais do país são maiores e que os investimentos em infraestrutura e em construção habitacional deverão assumir uma proporção mais alta no esforço de investimento, parece-me que o BNDES precisará ser maior do que ele é hoje, mas relativamente menor no conjunto do crédito global da economia, porque o mercado de capitais estará crescendo.

Valor: Se o mercado de capitais vai crescer, por que o BNDES também tem que crescer?

Coutinho: É importante que o banco acompanhe, porque dificilmente esse processo de transição serão tão rápido. Além disso, dificilmente a ponta mais longa do crédito, de 25, 30 anos, será preenchida pelo mercado. De outro lado, determinadas modalidades, que envolvam riscos mais altos ou 'project finance' mais difíceis, de estruturação mais complexa, não poderão dispensar a presença do BNDES.

Valor: Em que escala o BNDES deverá ser maior do que é hoje?

Coutinho: Vai depender um pouco da resposta do mercado. A escala do BNDES não pode ser mais de R$ 60 bilhões por ano, mas de R$ 100 bilhões ou um pouco mais. Isto, de fato, nos traz a questão de como novas fontes poderão apoiar o BNDES, que terá que ir à luta na busca por essas fontes. É importante também suplementar a capacidade de recursos institucionais mais estáveis.

Valor: Por quê?

Coutinho: Porque os mercados são sempre pujantes quando há um ciclo de ascensão econômica, mas são também punitivos nas recessões ou nas contrações de crédito. Portanto, é relevante que exista alguma capacidade contracíclica que o banco sempre desempenhou.

Valor: O governo está discutindo isso neste momento?

Coutinho: Esse é um debate de médio prazo. É uma discussão que vem sendo feita no Ministério da Fazenda, que tem plena consciência do problema, e também no alto escalão do governo, com o próprio presidente Lula. No período da crise, soluções ad hoc foram acionadas, mas será necessário pensar estruturalmente como resolver isso.

Valor: O crescimento do BNDES não é um inibidor do desenvolvimento do mercado de capitais?

Coutinho: Taxativamente, não! A BNDESPar é parte do mercado de capitais. É uma fornecedora de bons ativos a esse mercado. É uma 'market maker', na medida em que ajuda, com outros autores, a dar liquidez às transações no mercado. Ela atua predominantemente em parceria com fundos. E é uma grande estruturadora de fundos de private equity, de todas as modalidades, é parceira e estimuladora do mercado. Além disso, é uma das principais promotoras, na prática, da governança corporativa e do avanço do Novo Mercado. A BNDESPar opera estritamente em condições de mercado. Não utiliza os recursos do FAT ou de poupança institucional. Todas as operações são feitas em condições de mercado, às vezes até em condições mais caras que as do mercado. Algumas empresas reclamam, dizendo que no mercado está mais barato. Isso é um bom sinal, porque mostra que não estamos fazendo um 'crowding out' no mercado.

Valor: Mas o crédito de longo prazo do banco não concorre com o mercado?

Coutinho: No crédito, a atuação do BNDES é, em geral, muito mais complementar do que concorrente com a do mercado.

Valor: Com a queda dos juros, está chegando o momento em que o BNDES vai se especializar e atuar nas falhas de mercado, em vez de emprestar a todos os setores e empresas?

Coutinho: Isso vai depender da velocidade do desenvolvimento financeiro do país. Se for rápido e intenso, o papel do BNDES poderá especializar-se mais cedo. Isso é inevitável. As modalidades de crédito e/ou de operações do mercado de capitais de prazos mais longos, que exijam mais paciência, uma visão de longo prazo, uma estruturação financeira complexa de risco alto, tudo isso tende a ser uma missão de longo prazo do BNDES. O fomento ao desenvolvimento tecnológico e a pequenas empresas de base tecnológica, em segmentos onde o ciclo de produto e tecnologia é muito rápido ou a incerteza é muito alta, também constitui uma área por excelência de um banco de desenvolvimento. Vejo o mercado, por sua vez, ocupando espaços importantes no financiamento de média maturidade, de risco mais baixo, ou desenvolvendo também inovações financeiras complementares ao papel do BNDES.

Valor: Em que medida o BNDES difere de outros bancos de desenvolvimento?

Coutinho: Poucos bancos de desenvolvimento têm a capacitação e a diversificação de instrumentos do BNDES. Ele não é o maior banco de desenvolvimento do mundo. Ainda. Os chineses têm um banco muito grande por causa da escala de sua economia. Os coreanos também têm um. O BNDES, daqui a pouco, vai estar do mesmo tamanho do Banco Europeu de Investimento. Já é quase cinco vezes o tamanho do Banco Mundial. Mas tamanho não é documento. O que é relevante é que nenhum banco reúne o leque de modalidades que o BNDES opera.

Valor: A que modalidades o senhor se refere?

Coutinho: O BNDES cobre desde o capital semente, passando por 'venture capital' e 'private equity', até operações estruturadas em mercado de capitais. Opera formas de crédito as mais variadas. É um banco de investimento e também um banco de comércio exterior. É um banco de primeiro piso, de operação direta, e também de segundo piso, porque opera indiretamente com o sistema privado. Chega ao varejo através dos bancos privados, como nas operações do Finame. Poucas instituições conseguem executar um orçamento de R$ 130 bilhões com 2 mil funcionários.

Valor: Como o senhor avalia a crítica de que o direcionamento de crédito no Brasil reduz a eficácia da política monetária, obrigando o BC a ser mais conservador na fixação da taxa nominal de juros?

Coutinho: Essa crítica ignora a total anomalia do sistema de moeda e crédito no Brasil. Vivemos à beira da hiperinflação durante muito tempo e tivemos vários planos econômicos heterodoxos que falharam, e falharam em grande medida por causa de fragilidade cambial. Depois, tivemos um plano de estabilização (o Plano Real) que deu certo, mas às custas de uma taxa de juros brutalmente elevada por muitos anos. De 1994 a 1999, o juro real médio ficou em torno de 23%. Depois da adoção do tripé câmbio flutuante-metas de inflação-superávit primário, também muito bem-sucedido, o juro real caiu para um patamar médio de 12%. Só recentemente chegamos a um juro real abaixo de 5%, depois da crise e da deflação mundiais. Temos que levar em conta, portanto, que o sistema de moeda e crédito no país era inteiramente anômalo. Ele oferecia, na moeda nacional, pronta liquidez, juros muito altos e ausência de risco. Essa combinação é poderosamente distorcedora de todo o sistema de crédito. Nessas circunstâncias, se não existisse um sistema paralelo administrado, não teríamos crédito de longo prazo e o país estaria muito atrasado no desenvolvimento da sua economia. Entendo as razões de quem critica, mas também aponto para essa anomalia, embora, na minha visão, ela tenha sido até um mal necessário.

Valor: Por quê?

Coutinho: Porque a alternativa teria sido dolarizar a economia.