Título: Globalização e trabalho
Autor: Augusto M. de Mattos , Fernando
Fonte: Valor Econômico, 29/09/2009, Opinião, p. A14
Com salário estagnado desde 1970, o cidadão médio americano recorreu ao endividamento para ampliar o seu consumo, até chegar ao sistema subprime
O processo de globalização que teve origem com a desregulamentação dos fluxos de capitais - ocorrida de forma mais acentuada a partir da "contra-revolução" liberal iniciada com as eleições de Thatcher (Reino Unido, 1979) e Reagan ( EUA, 1980) e que desaguou na crise atual - gerou uma série de assimetrias e movimentos importantes cuja análise mais cuidadosa muitas vezes escapa ao debate recente, centrado nas propostas de reformas necessárias para "superar" a crise financeira internacional.
Dados das contas nacionais dos principais países capitalistas, referentes aos anos 1980 em diante revelam pelo menos três movimentos bastante claros: (a) queda da parcela salarial na renda nacional na maioria dos países; (b) aumento da taxa de lucro (ou taxa de retorno) nas atividades produtivas; (c) o referido aumento da taxa de lucros não tem se traduzido em aumento na taxa de investimento produtivo na quase totalidade dos países capitalistas desenvolvidos.
Uma parte importante da literatura crítica da globalização financeira dos idos tempos do neoliberalismo destaca que o crescimento da acumulação financeira tem superado, de forma destacada, a acumulação do capital em sua esfera produtiva. A despeito da correção desse diagnóstico, a ênfase nessa suposta dicotomia entre capital financeiro e capital produtivo esconde um fato ainda mais significativo e este sim um resultado bastante característico da globalização sob o capitalismo contemporâneo: a degradação do mercado de trabalho, manifesta na ampliação da massa de valor extraída do trabalho, no aumento do desemprego, na concentração da renda, da riqueza e do tempo livre.
A queda da parcela salarial "abriu espaço" para a ampliação da "taxa de retorno", mas a financeirização da riqueza acaba redefinindo os critérios de aplicação do capital produtivo, cada vez mais compelidos pela necessidade de acumulação de curto prazo e alta lucratividade possibilitada pelas diversas modalidades de aplicações financeiras, pelo menos até que a crise atual fosse deflagrada.
As decisões de abrir mão da liquidez em favor de aplicação do capital na esfera produtiva tornavam-se, portanto, cada vez mais constrangidas pelo custo de oportunidade que significavam os altos retornos esperados e de fato obtidos (até que a crise chegasse) pela aplicação do capital na esfera financeira. Esse "desvio" de recursos da esfera produtiva para a financeira, portanto, é que explica a degradação dos mercados de trabalho e os movimentos concentradores promovidos pela ordem financeira desregulada que ora se encontra em xeque. Para as grandes corporações, a dicotomia capital financeiro versus capital produtivo não impedia, pelo menos até a eclosão da crise ainda vigente, um aumento da acumulação de capital. A dicotomia capital financeiro-capital produtivo revela-se uma falsa e fútil disjuntiva, posto que, no âmbito das estratégias das grandes corporações capitalistas, tratava-se apenas de definição da composição do portfólio de aplicação do capital. A marca do processo de globalização financeira liberal foi, na verdade, a degradação do trabalho.
Os dados referentes aos anos 80 em diante mostram que houve aumento da concentração da renda e da riqueza na maior parte dos países capitalistas desenvolvidos. Houve também o que chamaremos aqui de concentração do tempo livre, pois a finança desregulada promoveu, ao mesmo tempo, uma ampla e crescente parcela de desempregados ao lado de uma pequena (mas também crescente) parcela de indivíduos vivendo de rendas retiradas de diversas modalidades de aplicações financeiras. Ou seja, muitos não usavam seu tempo no trabalho simplesmente por não terem trabalho, enquanto outros (os rentistas) desfrutavam de um tempo livre cada vez maior, dada a não necessidade de trabalhar, por retirarem sua renda das próprias aplicações financeiras, cada vez mais rentáveis.
Nos anos mais recentes pré-crise, as diversas modalidades de desigualdades acima aludidas pareciam se acentuar. Dados recentes da OIT revelam que, nos EUA, entre 2003 e 2007, o pagamento dos altos executivos cresceu 45% em termos reais, enquanto o dos executivos de médio escalão, 15%, em comparação com apenas 3% do trabalhador americano médio.
Desde 1970, o salário médio americano está quase estagnado, o que ajuda a explicar a crise atual. A ampliação da parcela do consumo na renda nacional - uma marca do capitalismo americano das últimas décadas do século - só seria possível, dada a estagnação salarial, pelo crescente endividamento das famílias, o que, de qualquer forma, não poderia durar para sempre, ainda mais quando passou, cada vez mais, a apoiar-se em bases tão frágeis quanto as do sistema subprime, conforme agora se sabe.
Trabalhando-se dados também recentemente divulgados pela OIT pode-se constatar que, em 1991, a parcela do emprego das economias avançadas representava 17,5% do total do emprego mundial; e, em 2004, esta parcela era de 15,5%. A partir de 2004, porém, esse movimento inicialmente alvissareiro, em favor dos países periféricos, cessou de ocorrer, sendo possível prever que a digestão da crise atual pode estar degradando esse raro movimento desconcentrador ocorrido sob a ordem internacional que vigorou nas últimas décadas.
A superação do Consenso de Washington, justamente celebrada por muitos, não garante necessariamente que a mesma será sucedida por uma ordem internacional menos indigesta para o mundo do trabalho. Os sinais de recuperação emitidos pelos indicadores econômicos das últimas semanas podem contribuir para criar a ilusão de que apenas pequenas mudanças são necessárias para retomar o processo de crescimento econômico. Mudanças profundas na regulação dos movimentos de capitais - colocando o setor financeiro a serviço da produção - são fundamentais para promover melhorias no mundo do trabalho.
Fernando Augusto Mansor de Mattos é pesquisador-visitante no Ipea e professor na Faculdade de Economia da UFF. E-mail: fermatt@uol.com.br...