Título: 60 anos de Revolução na China: e agora camarada?
Autor: Estrella , Frederico
Fonte: Valor Econômico, 30/09/2009, Opinião, p. A14

O desenvolvimento da economia e da sociedade chinesas sob a liderança de Mao Tse-tung foi marcado por grandes avanços e retumbantes fracassos

Uma piada que circulou na Ásia no final de 2008, quase 60 anos após a criação da República Popular da China (RPC) em 1º de outubro de 1949, apresenta de forma jocosa as transformações ocorridas na China no período:

"1949: Apenas o socialismo poderia salvar a China. 1979: Apenas o capitalismo poderia salvar a China. 1989: Apenas a China poderia salvar o comunismo. 2009: Apenas a China poderia salvar o capitalismo".

O desenvolvimento da economia e da sociedade chinesas sob a liderança de Mao Tse-tung foi marcado por grandes avanços e retumbantes fracassos. Sua morte finalmente abriu espaço para as reformas liberalizantes de Deng Xiaoping, implementadas a partir de 1978, de forma ordenada e seguindo o princípio de auto-fortalecimento nacional.

Rapidamente, as competências e o espírito empreendedor do povo chinês floresceram. Em menos de 30 anos, um país em que as pessoas estavam acostumadas a escolher entre as três cores disponíveis de vestuário transformou-se no maior centro manufatureiro mundial. Cadeias de produção globais foram transferidas para o país, seduzidas pela disponibilidade de mão de obra barata, investimentos maciços em infraestrutura e a possibilidade de acesso a um mercado de consumo de proporções inigualáveis.

A abertura da China para o mundo no início da década de 1980 representou a incorporação de um volume gigantesco de fatores de produção - trabalho e capital - à economia global, assim como a possibilidade de aumentos sucessivos de produtividade em função de ganhos de escala e especialização dos países. A integração da China ao processo de produção e consumo global foi beneficiária do processo de globalização, reforçando-o ainda mais.

Em 2008, em resposta ao desaquecimento da economia chinesa causado pela própria dinâmica de crescimento doméstico acelerado, e agravado pela crise mundial, o governo chinês implantou um pacote econômico com alicerces na expansão do crédito e nos investimentos em infraestrutura. Em 2009 e 2010, a economia chinesa deverá se expandir a taxas próximas a 8% e, pela primeira vez após a Segunda Guerra Mundial, a economia global terá uma recuperação sem a liderança dos Estados Unidos.

A importância da China para o desenvolvimento e bem-estar do mundo, assim como os problemas que esse crescimento desenfreado acarreta, já são praticamente senso comum. Contudo, a sustentabilidade, a intensidade e as características do crescimento chinês no longo prazo, aspectos de grande relevância para o Brasil, são ainda debate incipiente.

O milagre do crescimento chinês é uma variante extremada do modelo asiático, adotado antes no Japão, na Coreia do Sul e em alguns países menores como a Malásia e Cingapura: taxas de poupança (e investimento) elevadas, turbinadas por um processo de transição demográfica, resultando em uma expansão acelerada da economia.

Nos últimos anos, a taxa de poupança doméstica chinesa aproximou-se de 50% do PIB. Mesmo investindo anualmente cerca de 40% de sua produção, a sociedade chinesa exportou os recursos excedentes para o resto do mundo, tornando amplamente conhecidos os produtos "Made in China".

A possibilidade de que essa relação simbiótica sobreviva na intensidade dos últimos anos é reduzida. O ajuste na economia norte-americana e em outros países desenvolvidos deverá ter como contrapartida a redução no superávit em transações correntes chinês. Isso não significa, entretanto, que o processo de intenso crescimento na economia chinesa chegou ao fim. De fato, subsistem ainda condições e oportunidades para que a China registre taxas de expansão do produto expressivas.

Primeiro, a China conta com a possibilidade de continuidade da transferência de um grande contingente de trabalhadores que atua em atividades de baixa produtividade (sobretudo no meio rural) para setores mais modernos. Isso ainda será realidade por um período relevante, mesmo com o recrudescimento do processo de envelhecimento da população chinesa previsto para a segunda metade da próxima década - em grande parte resultado da política de filho único instituída por Deng.

Segundo, a redução na taxa de poupança chinesa não precisa ser feita às custas do nível de investimento, existindo a alternativa da substituição do excesso de exportações sobre importações pelo aumento do consumo privado. Esse redirecionamento é viável a partir de ajustes nos incentivos que estimulam a poupança chinesa por motivos de precaução - por exemplo, a virtual ausência de cobertura de saúde e previdência para uma grande parcela da população.

Terceiro, há um espaço enorme para o aumento do crescimento da produtividade na China, notadamente nas atividades do setor de serviços que ainda possuem baixo grau de abertura ao capital estrangeiro. O país avança em uma mudança de grandes proporções na educação. Em 1999, ingressavam no ensino superior chinês cerca de 1 milhão de novos estudantes. Em 2008, as estimativas indicam que cerca de 6 milhões de estudantes foram admitidos nas faculdades e universidades chinesas. Em paralelo, observa-se a criação de centros de pesquisa (poucos ainda, naturalmente) em processo de convergência para os centros de excelência de universidades norte-americanas. Uma população cada vez mais preparada para a incorporação e desenvolvimento de novas tecnologias deverá permitir que a força motriz do crescimento migre progressivamente da incorporação de fatores de produção para ganhos de produtividade, característica de economias mais ricas e modernas.

Dificilmente a China terá novamente taxas médias de crescimento semelhantes às de 2003-2007, entre 10% e 13% ao ano - excessivas até para os padrões atuais da economia chinesa. O ritmo atual, com declínio ao longo do tempo, é mais condizente com uma visão de longo prazo. Ainda há muito a ser feito para que isso se torne realidade e há também riscos - muitos superestimados no Ocidente. Contudo, a célebre frase proferida pelo Grande Timoneiro nas cerimônias de proclamação da RPC ainda ecoa na sociedade chinesa, e cada vez mais no mundo: "The Chinese People Have Stood Up!" - "O povo chinês se levantou!"

Frederico Estrella é mestre em economia pela EPGE/FGV e sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada.