Título: Irlanda decide, mais uma vez
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 01/10/2009, Opinião, p. A13

Amanhã os eleitores irlandeses irão às urnas pela segunda vez para decidir se adotarão o Tratado de Lisboa da União Europeia (UE)

Para a UE, as apostas não poderiam ser mais altas. O Tratado de Lisboa foi a conciliação acertada pelos líderes da UE depois da rejeição do Tratado Constitucional em referendos populares realizados na França e na Holanda em 2005. Muita energia em negociações foi gasta na elaboração do Tratado, e sua rejeição pela segunda vez pelos eleitores irlandeses poderá impedir que a União ratifique e implante as suas cláusulas; isso inevitavelmente provocaria uma paralisia das políticas públicas e uma deterioração institucional.

A campanha do referendo na Irlanda testemunhou o reaparecimento de um conflito entre uma constelação de forças familiares. Do lado do "Sim" estão todos os principais partidos políticos, sindicatos de trabalhadores, a comunidade de negócios e uma ampla rede de grupos da sociedade civil. Sua campanha tem sido mais coordenada e intensa que na vez anterior, visando mobilizar o máximo número de apoiadores e assegurar um alto índice de comparecimento.

No lado do "Não", uma coalizão díspar baseada tanto na extrema direita como na extrema esquerda, que inclui ultracatólicos e marxistas ultrapassados, procurou incitar histeria em torno de supostas ameaças, que vão do serviço militar obrigatório à eutanásia e ao aborto. Mas o lado do "Não" lutou para identificar um ponto de referência coerente e não parece ter nada do dinamismo e vigor que projetou na última vez.

O principal motivo para isso é que a Irlanda foi traumatizada pela adversidade econômica no ano passado. O orgulho arrogante dos anos de Tigre Celta é uma lembrança distante, graças à pior recessão na história da Irlanda como um Estado independente. Em 2009, os economistas esperam que a economia se contraia em até 8%, com probabilidade de queda ainda mais acentuada no próximo ano.

O déficit orçamentário é agora o maior da UE, e a dívida pública inchou, à medida que o governo lutava para compensar a queda pronunciada nas receitas. O sistema bancário irlandês se aproximou do colapso total em setembro de 2008, e só foi salvo por uma garantia governamental de ¿ 400 bilhões a todos os depósitos bancários. Mais recentemente, o Estado assumiu os passivos de construtoras nocivas, estabelecendo um "banco ruim", que potencialmente poderia sobrecarregar os contribuintes irlandeses com uma montanha de dívidas por décadas a fio.

A profundidade do mergulho da economia ajudou o governo irlandês nas suas tentativas de obter um voto pelo "Sim". O Banco Central Europeu ofereceu uma tábua de salvação monetária que proporcionou uma muito necessária liquidez dentro do sistema financeiro e ajudou o governo a deter a crise de confiança gerada pelo colapso do sistema bancário.

Ministros do governo e deputados da UE mencionam reiteradamente o exemplo da Islândia ao chamarem a atenção para o que poderia ter acontecido à Irlanda se o país estivesse fora da UE.

Assim, a segunda campanha de referendo trouxe de volta ao jogo a dimensão econômica da filiação da Irlanda na UE, que esteve em grande parte ausente do debate de 2008 sobre o Tratado. A Irlanda se beneficiou desproporcionalmente da generosidade da UE durante seus 35 anos de filiação e, em 2008, ainda estava recebendo um valor líquido de ¿ 500 milhões do orçamento da UE. Quando os eleitores são lembrados do custo potencialmente catastrófico de o país ser excluído, não só da área do Mercado Único, mas também das estruturas decisórias no Conselho de Ministros e no Banco Central Europeu, o que está em jogo no referendo fica claro.

Além disso, o governo irlandês obteve garantias jurídicas dos seus parceiros na UE nos temas que mais preocuparam os eleitores que votaram "Não" ou que se abstiveram no primeiro referendo. Esses compromissos afirmam que nada nos tratados afetará as prerrogativas irlandesas sobre aborto, neutralidade militar e tributação. O governo também obteve um acordo no âmbito da UE de que, em vez de reduzir o tamanho da Comissão Europeia, a Irlanda poderá manter um lugar permanente à sua mesa. Esse sucesso de negociação proporcionou ao governo uma considerável pausa para fôlego, durante a qual poderá conduzir uma campanha de mais eficaz.

Essa combinação de garantias jurídicas com circunstâncias econômicas alteradas está ajudando a mobilizar uma maioria favorável ao Tratado. Pesquisas de intenção de voto realizadas nas semanas recentes indicam que o campo do "Sim" controla uma sólida maioria, de 62% para 23%, com 15% do eleitorado indeciso.

Mas o quadro está longe de estar definido. Sondagens indicam que os irlandeses são firmes apoiadores da filiação na UE e do processo de integração. O problema é que essas atitudes favoráveis variam consideravelmente em intensidade e constituem um "bloco maleável" de apoio à UE; no referendo de 2008, esse bloco maleável desmoronou na semana final da campanha.

Parece claro que uma segunda rejeição do Tratado de Lisboa pelo eleitorado irlandês mergulhará a UE numa crise renovada e ameaçará desbaratar os ganhos consideráveis tanto na legitimidade democrática como na capacidade decisória coletiva que emana do novo Tratado. Tudo indica que agora os eleitores parecem determinados a aprovar o tratado. Mas ninguém deve considerar os irlandeses como favas contadas nos dias finais da campanha.

John O´Brennan é membro fundador do Centro para o Estudo da Europa Mais Ampla ( www.widereurope.ie ) e conferencista em Política e Sociedade Europeia na Universidade Nacional da Irlanda Maynooth. É autor de "The Eastern Enlargement of the European Union and National Parliaments within the Enlarged European Union" (A ampliação oriental da União Europeia e dos Parlamentos Nacionais no âmbito da União Europeia ampliada). Copyright: Project Syndicate, 2009. www.project-syndicate.org