Título: Rio 2016 e o choque de progresso
Autor: Neri, Marcelo
Fonte: Valor Econômico, 06/10/2009, Opiniao, p. A15

O Rio de Janeiro foi um engano. Deixe-me explicar, já que sou carioca da gema. Os lusitanos quando aqui aportaram em janeiro, por suposto, enxergaram a baía de Guanabara como o estuário de rio, dando o nome de Rio de Janeiro. A não ser por esse engano que parece anedota de português: a baía de Janeiro deveria ser aqui. A Baia de Todos os Santos inspirou Bahia, os grandes rios ao sul e ao norte do Brasil deram nome aos respectivos estados do Rio Grande. Aqui o lapso inicial foi eternizado no nome do estado, do município e do Grande Rio, a metrópole, perfazendo o que chamamos aqui de os "três Rios". Por favor, não confundam com o município fluminense de Três Rios, provinciano sim, mas nem tanto.

O engano não foi só na nascente do Rio mas segue curso acima: o PDBG (Programa de Despoluição da Baia de Guanabara), é financiado pelo Banco Japonês de Desenvolvimento, nosso concorrente olímpico. Além de dinheiro, havia a mobilização popular herdada da Rio 92. Nossa pesquisa com o Instituto Trata Brasil, demonstra o entupimento da expansão da rede geral de esgoto no Rio. PDBG é um caso clássico de esgoto "enganado". Já o Baia Azul, um similar de Salvador do PDBG, financiado pelo BID dobrou o acesso a saneamento básico entre as copas de 1998 e 2002. Se dinheiro e mobilização são precisos, boa gestão também é.

No caso dos três Rios, a má gestão, além dos problemas internos às diferentes esferas públicas, estão também na confluência delas. Octávio Amorim argumenta que sucessivos prefeitos e governadores do Rio ao almejarem a presidência do Brasil, assorearam o fluxo de financiamento federal em direção aos três Rios. O alinhamento entre os três níveis de governo, patente em Copenhague seria exceção, e não regra. A relação entre Estado e sociedade também aqui retrocedeu. Enquanto o país viveu nos últimos 10 anos um processo de formalização, os três Rios navegaram a primeira parte desse percurso na contramão. Entre 1997 e 2003 todos os indicadores de formalização dos pequenos negócios que caracterizam o tecido produtivo local caíram à metade, idem para formalização previdenciária dos trabalhadores em geral. Nesse período a conhecida malandragem local, o verdadeiro esporte local, tem como capital a renovada Lapa e como personagem símbolo mais o Mané do que propriamente o Zé Carioca. O sucesso de público e de crítica da série do jornal "O Globo" intitulada "Ilegal, e daí?" ilustra o clamor carioca contra o caos, ouvido pelos atuais governador e prefeito, e traduzido em ação nas favelas, nas ruas, campos, construções sob o codinome de choque de ordem. O termo choque de gestão foi tomado emprestado do sucesso de Minas Gerais e do Espírito Santo, digo sucesso não só pela marca administrativa mas pelo bom desempenho dos indicadores sociais, econômicos e eleitorais, alçando respectivos governadores reeleitos aos 80% de votos locais. Isso demonstra como uma gestão voltada a metas e resultados tangíveis pode pelas vias de seus diversos afluentes desaguar em um mar de sucessos.

Os três Rios lançaram seus respectivos choques de ordem, passaram ao choque de gestão mas estamos talvez ainda em meio aos meios e não nos fins; nas condições necessárias e não nas suficientes. Aí entra o sucesso da candidatura olímpica carioca que representa uma ponte do "Ilegal, e aí?" ao "Legal, e aí!", de fazermos a travessia entre as margens, superando os percalços existentes entre os choques de ordem e de gestão, de um lado, e o choque de progresso, de outro. Podemos agora, quem sabe, aproveitar o aniversário de meio século de Brasília em 2010 para superar de uma vez por todas o saudosismo de quem foi Capital da República e Corte do Império mas ainda não desacostumou da fantasia.

Nossos Amir Klink e Torben Grael são exemplos vivos da capacidade dos habitantes dos três Rios de navegar em direção a novas metas traçadas. A escolha em 2007 do Cristo Redentor, essa milenar obra de 75 anos como uma das sete novas maravilhas da humanidade, reflete essa capacidade. Eu estava então em Machu Picchu e vi a surpresa dos peruanos com o veredito, afinal não se tratava de competição acerca de nossos inegáveis dotes naturais mas de obras humanas. Mal sabem nuestros hermanos que a grande obra humana em questão é a coesão da corrente carioca em consonância com a do resto do Brasil, em direção aos objetivos apresentados. A cada carnaval mostramos a nossa renovada capacidade de atingir desafios.

Agora como muitos podem se enganar por muito tempo, e serem iludidos por falas fáceis sobre um improvável futuro, o Centro de Políticas Sociais - CPS/FGV lança pesquisa para monitorar indicadores sociais das 27 capitais brasileiras. A nossa inovação metodológica está em abrir os microdados dos municípios das capitais da PNAD, para comparar prefeitos e suas obras. Começamos aproveitando a coincidência entre ciclos olímpicos e mandatos de prefeitos, comparando a performance de diferentes prefeitos das olimpíadas de Atlanta 1996 a Pequim 2008. Por exemplo, quem foi melhor em levantamento de pessoas da pobreza Cesar Maia II (entre Sidney 2000 e Atenas 2004) ou Cesar Maia III? Onde o salto da nova classe média citado por Lula da Silva em Copenhague foi maior? Na pequena Campo Grande ou na Grande São Paulo? O que mudou nessas cidades? Mudou por que? Queda do desemprego, aumento de salário ou nenhuma das alternativas acima? Obviamente, há que se considerar as diferenças de contexto, olhar para as diferenças de velocidades relativas entre localidades, como uma saudável corrida por melhores indicadores em diferentes períodos de tempo. Para além da PNAD 2008, trazemos dados dos últimos doze meses quando além da crise econômica em curso, houve a passagem de bastão entre alcaides. Mais do que rota fixa, o site www.fgv.br/cps/2016 é um instrumento de navegação, permitindo comparar a performance das capitais, aí incluindo as das 12 sedes da Copa de 2014.

A conquista da sede da Olimpíada de 2016 é apenas a largada de uma corrida de obstáculos por resultados palpáveis que está apenas começando, e como qualquer competição deve ser acompanhada pelo público. A Olimpíada, além de servir ao interesse global, deve produzir legado local. Do povo, pelo povo, para o povo brasileiro em geral e dos três Rios, em particular.

Marcelo Côrtes Neri, chefe do Centro de Políticas Sociais do IBRE/FGV e professor da EPGE/FGV, é autor de "Retratos da Deficiência", "Cobertura Previdenciária: Diagnóstico e Propostas" e "Ensaios sociais". E-mail: mcneri@fgv.br