Título: Novas forças sindicais põem montadoras e ABC em xeque
Autor: Olmos , Marli
Fonte: Valor Econômico, 16/10/2009, Brasil, p. A4
Quando descentralizou o parque produtivo, entre meados dos anos 90 e início desta década, a indústria automobilística parecia ter conseguido escapar, em parte, do mais organizado movimento sindical do país. A última campanha salarial, contudo, registrou um novo capítulo na história dos metalúrgicos. Foram os trabalhadores de regiões distantes do combativo ABC que paralisaram fábricas e conseguiram reajustes salariais maiores que os colegas da base historicamente mais mobilizada.
Entre as justificativas para o fenômeno, destacam-se ao menos três. Primeiro, uma década foi tempo suficiente para muitos operários perceberem que produzem carros tão bem quanto os que saem da região dos trabalhadores mai bem remunerados. Outro ponto: com o aquecimento das vendas de veículos no país, a indústria cedeu mais nos acordos trabalhistas. Por fim, a proximidade da direção dos metalúrgicos do ABC com o governo Lula fez surgir novas organizações sindicais de oposição. O tempo dirá se dessas instituições surgirão novas lideranças políticas.
A mobilização dos operários do Paraná, segundo polo de produção de veículos no país, surpreendeu a indústria. Com data-base em setembro, a mesma do ABC e do interior paulista, os metalúrgicos paranaenses pararam a produção na Volkswagen e Renault, atrapalhando os planos das duas empresas de vender mais, aproveitando o aquecimento do mercado na véspera de aumento do IPI.
Houve greves também - embora com duração bem menor que as do Paraná - em Taubaté (Ford e Volkswagen) e São José dos Campos (General Motors), no Vale do Paraíba, São Paulo, onde as montadoras estão há mais tempo. Mas o melhor acordo saiu em outra local do interior. Com um dia de mobilização, empregados da Honda, em Sumaré, e da Toyota, em Indaiatuba, conquistaram o mais alto índice de reajuste de salários dessa campanha - 10% de reajuste, com aumento real de 5,32%.
Os trabalhadores da Honda e da Toyota são representados pelo sindicato de Campinas, dirigido por uma nova corrente, a Intersindical, dissidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT). O sindicato de São José dos Campos é filiado ao Conlutas, outra dissidência da CUT. Já o comando de Taubaté é alinhado à CUT. No Paraná, a representação da categoria é da Força Sindical. Uma onda de mobilização como a da última campanha nunca mexeu da mesma forma com a Fiat, instalada em Minas Gerais há mais de 30 anos.
Na Volkswagen, maior produtora de automóveis do país, as principais fábricas têm data-base em setembro - ABC, Taubaté e Paraná. O presidente da Volkswagen, Thomas Schmall, diz que é mais fácil negociar hoje com a direção do ABC do que com a do Paraná. "No Paraná eles são muito jovens", afirma. O vice-presidente de Recursos Humanos da Volks, Josef-Fidelis Senn, concorda com Schmall e diz que houve um amadurecimento nas relações trabalhistas com a direção dos metalúrgicos do ABC.
No caso do Paraná, uma fonte da indústria conclui que o investimento do setor no Estado acabou aumentando o poder da Força Sindical. A central não tinha uma montadora sob seu comando desde que a Ford transferiu a fábrica de caminhões de São Paulo para o ABC, há quase uma década. "A industria automobilística é carro-chefe nesse cenário e o sindicato do ABC sempre viu isso, por isso tinha uma postura aguerrida", diz.
A experiência mostra que o ganho inicial com a fuga das áreas onde a atuação sindical é mais intensa se esvai rapidamente, segundo Glauco Arbix, professor de sociologia e coordenador do Observatório da Inovação do Instituto de Estudos Avançados da USP. Arbix, que acompanhou o movimento metalúrgico principalmente na década de 90, com a constituição das câmaras setoriais, destaca que fábricas recém-construídas vivem uma espécie de "estado de graça" num primeiro momento. Mas o cenário muda à medida que os trabalhadores começam a se conhecer. "Cria-se uma sociabilidade, que favorece a reivindicação", completa.
Para ele, no começo o operário acha que vale a pena receber menos e morar em regiões com custo de vida mais baixo e qualidade de vida melhor. Mas, com o tempo ele percebe o nível de qualidade do seu trabalho e começa a buscar a elevação do seu padrão salarial. Nota que é capaz de produzir até carros ainda mais modernos, em fábricas que foram erguidas com conceitos atuais. "A tese de que o trabalhador aceita trocar um salário melhor numa região com problemas como enchentes, poluição e trânsito, como o ABC, por um ordenado mais baixo nas cidades que oferecem qualidade de vida melhor funciona só no começo."
Arbix discorda da ideia de que o comando dos metalúrgicos do ABC se enfraqueceu. A diferença, diz, é que esse sindicato passou a adotar práticas diferentes. Deixou, por exemplo, de partir imediatamente para o confronto, preferindo negociar. "Na crise esse comportamento da CUT teve papel importante para que a indústria conseguisse o incentivo da redução do IPI, o que acabou trazendo benefícios também para o trabalhador, com o aumento da atividade", destaca. "Eu acho essa postura mais inteligente", diz Arbix.
Para o especialista em gestão de pessoas Fernando Tadeu Perez, embora não tenham perdido força de pressão, os sindicalistas do ABC "estão mais cautelosos, pois hoje existe a possibilidade de as montadoras transferirem linhas de produção para novas fábricas". "No passado as montadoras negociavam com a espada na cabeça", diz Perez, que participou de muitas dessas negociações até 2001, quando era vice-presidente de recursos humanos da Volkswagen.
Depois de passar pelo comando da mesma área no banco Itaú, hoje, como consultor associado da Agreggo, ele diz que reações como os últimos movimentos dos trabalhadores no interior de São Paulo e Paraná eram esperadas pelas montadoras. "Ao escolher outros locais para investir, a indústria tentou mostrar aos sindicalistas e trabalhadores que a realidade das negociações precisaria mudar. Mas todos sabiam que era uma questão de tempo para que o processo voltasse à tona, mesmo em outras regiões do país", afirma.
É importante não perder de vista que a migração dos investimentos também foi estimulada por benefícios tributários, que provocaram uma verdadeira guerra fiscal entre Estados e municípios. Mas, ao mesmo tempo, Perez lembra que a CUT também continua "intimamente ligada ao PT e, consequentemente ao governo, o que faz com seja mais cautelosa".
Em relação ao acordo na base dos empregados da Honda e Toyota, Perez diz que se essas empresas podem pagar mais, provavelmente é porque têm custos de produção mais baratos. "Isso é consequência direta de processos produtivos mais enxutos e de conceitos diferenciados, trazidos de suas matrizes e culturas orientais."
Para o professor Glauco Arbix, toda essa movimentação na esfera trabalhista pode se refletir nas próximas campanhas eleitorais. Ele prevê não apenas a renovação de lideranças no campo da CUT e do PT como também a abertura de portas para novas lideranças.
De qualquer maneira, para Arbix, o mais interessante desse cenário é acompanhar, por meio dos metalúrgicos, a maneira como o Brasil sai da crise. "Havia temor de desemprego, que é o maior inimigo do movimento sindical", diz. "Mas, ao contrário, os metalúrgicos, que continuam sendo referência no país, não apenas conquistaram aumentos reais como conseguiram até fazer greves, o que serve no mínimo para demonstrar a robustez da economia."