Título: Sim, uma outra política cambial é possível
Autor:
Fonte: Valor Econômico, 08/10/2009, Política, p. A12
Alguns economistas ortodoxos ficaram desconfortáveis com as declarações de representantes do setor produtivo sobre o caráter desastroso da política cambial brasileira. Para os ortodoxos brasileiros essa afirmação seria desprovida de fundamentação científica, estando mais ancorada nas paixões do que na razão. Além disso, afirmam eles que a adoção de uma política de administração da taxa de câmbio teria o efeito de solapar o regime de metas de inflação brasileiro, pondo em risco a estabilidade de preços duramente obtida nos últimos 15 anos.
Em artigos anteriores, publicados no Valor e em outros veículos, já tivemos a oportunidade de argumentar que a tendência à apreciação da taxa real de câmbio ocorrida desde 2005 tem produzido efeitos fortemente negativos sobre a economia brasileira. Com efeito, a participação dos manufaturados na pauta de exportações brasileira tem se reduzido, assim como a participação da produção doméstica no consumo aparente de produtos manufaturados. Tratam-se de sinais inequívocos de desindustrialização da economia brasileira, com efeitos negativos sobre as perspectivas de crescimento de longo prazo, dado que a fonte de retornos crescentes de escala se encontra nas atividades manufatureiras, não nas atividades primárias exportadoras.
Neste artigo iremos abordar a relação entre política cambial, política monetária, política fiscal e inflação. Segundo a interpretação ortodoxa a estabilização da taxa de câmbio num patamar competitivo só seria possível se o Banco Central do Brasil fizesse operações não-esterilizadas de compra de dólares no mercado à vista de câmbio. As operações esterilizadas, segundo essa linha de interpretação, não teriam nenhum impacto perceptível sobre a taxa de câmbio, ao passo que a introdução de controles de capitais seria uma medida ineficaz para impedir a apreciação cambial resultante dos fluxos de entrada de capitais. Dessa forma, a única alternativa possível seria a realização de intervenções não-esterilizadas. O problema é que, nesse contexto, o Banco Central perderia a capacidade de fixar a taxa nominal de juros, podendo apenas determinar o valor da taxa nominal de câmbio. Dessa forma, a lógica operacional do sistema de metas de inflação seria destruída, haja vista que o objetivo da política monetária não seria mais o controle da taxa de inflação, mas a administração da taxa de câmbio. Perder-se-ia assim a âncora nominal para a taxa de inflação, abrindo a possibilidade para o surgimento de um processo inflacionário alimentado por profecias auto-realizáveis: expectativas de elevação da taxa de inflação produzem um aumento da demanda agregada, o que pressiona a taxa de inflação para cima devido à inelasticidade da oferta agregada no longo prazo, sancionando as expectativas de elevação da inflação, o que possibilita um novo ciclo de elevação da taxa de inflação esperada. Esse quadro seria agravado pelo caráter puramente passivo da política monetária e pelo fato de que o objetivo da política cambial seria manter um câmbio depreciado, o que tem um impacto negativo sobre o nível de salário real, podendo abrir caminho para uma espiral salários-preços em função do conflito distributivo entre firmas e sindicatos sobre o nível de salário real aceitável para ambos.
O raciocínio ortodoxo possui dois equívocos fundamentais. Em primeiro lugar, parte-se do pressuposto de que uma política de controles da entrada de capitais se basearia necessariamente em controles seletivos (ou seja, direcionados para um tipo específico de fluxo de capitais) ao invés de abrangentes. Nesse contexto, fica fácil argumentar que os controles podem ser burlados pelo sistema financeiro brasileiro, que é altamente sofisticado. Mas, boa parte dos economistas que defendem a adoção de controles de capitais, advogam a adoção de controles abrangentes, o que reduziria muito a possibilidade de se burlar os mesmos por manobras criativas por parte do sistema financeiro.
No entanto, o segundo erro é mais relevante. Os economistas ortodoxos assumem que a administração da taxa de câmbio pode ser feita apenas por intermédio do Banco Central. Isso é falso. Os economistas que defendem uma política ativa de administração da taxa de câmbio, consideram indispensável a constituição de um fundo de estabilização cambial, financiado com recursos do Tesouro Nacional. Dessa forma, as operações de compra e venda de dólares no mercado à vista de câmbio não terão nenhum impacto sobre a base monetária e, portanto, sobre a capacidade do Banco Central de fixar a taxa nominal de juros com vistas ao atendimento da meta de inflação. Uma possibilidade concreta para o caso brasileiro seria aproveitar o fundo soberano brasileiro, turbinando o mesmo com aporte adicional de recursos pelo Tesouro Nacional de forma a permitir que o mesmo atue como "market maker" no mercado de câmbio. Contudo, para que o aporte de recursos ao fundo de estabilização cambial não gere efeitos desestabilizadores sobre a dinâmica da dívida pública brasileira é necessário que a constituição desse fundo seja precedida de um aumento considerável da meta de superávit primário como proporção do PIB. É nesse quesito que verificamos a importância dos controles à entrada de capitais. A magnitude do fundo de estabilização cambial será tão maior quanto maior for o fluxo de entrada de capitais na economia brasileira, o que implica necessariamente num maior esforço fiscal em termos do aumento da meta de superávit primário. Para reduzir o esforço fiscal requerido para a implantação desse fundo, faz-se necessária a introdução de controles abrangentes da entrada de capitais no Brasil para reduzir, ainda que marginalmente, os fluxos de dólares para a economia brasileira.
Em suma, uma nova política cambial que combine administração da taxa de câmbio por intermédio do fundo de estabilização cambial, controles a entrada de capitais e aumento da meta de superávit primário não só é perfeitamente possível, como compatível com o regime de metas de inflação. A implantação da mesma, no entanto, requer a combinação de "desenvolvimentismo" com "fiscalismo".
José Luis Oreiro é professor do Departamento de Economia da UnB e pesquisador do CNPq. E-mail: jlcoreiro@terra.com.br.
Luiz Fernando de Paula é professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ e pesquisador do CNPq. E-mail: luizfpaula@terra.com.br