Título: Índice de prisões e punições é menor em crimes econômicos
Autor: Prestes , Cristine
Fonte: Valor Econômico, 29/09/2009, Legislação & Tributos, p. E1

A sequência dos fatos é sempre a mesma, só mudam os personagens: surge um novo escândalo no cenário nacional, suspeitos de envolvimento em crimes econômicos são presos e, dias depois, soltos por habeas corpus concedidos pela Justiça. O segundo passo é, via de regra, a recorrente discussão sobre o endurecimento das leis penais. A sensação de ausência da punição para o que se convencionou chamar, no Brasil, de "crime do colarinho branco" é, em parte, retratada por uma pesquisa feita pela Procuradoria Regional da República da 3ª Região, em São Paulo. Feito para testar a viabilidade de auferir a qualidade da atuação do Ministério Público Federal com base em estatísticas, o estudo acabou por demonstrar em números uma situação que, na prática, já é conhecida: quando se trata de crime econômico, nem sempre a punição é a regra.

A pesquisa foi realizada a partir de um levantamento de decisões em matéria criminal proferidas pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 3ª Região entre 1º de janeiro de 2003 e 31 de dezembro de 2004 disponíveis em meio eletrônico. Foram analisados 1.927 acórdãos do TRF relativos a tipos de recursos diversos na área penal, entre eles apelações criminais e habeas corpus, instrumentos que representam a maior parte da amostra. Os pesquisadores selecionaram quatro tipos de crimes - tráfico de drogas, contrabando e descaminho, sonegação fiscal e sonegação de INSS - e perceberam que, enquanto a quase totalidade dos réus que respondem por crime de tráfico de drogas está presa durante a interposição de recursos da acusação e da defesa, apenas um número ínfimo deles está na mesma condição quando o processo trata de crimes de sonegação fiscal e de INSS (veja quadro ao lado).

Um exemplo recente ilustra a situação. Durante a Operação Harina, deflagrada pela Polícia Federal em 28 de agosto deste ano após investigações sobre um esquema de câmbio ilegal, lavagem de dinheiro e evasão de divisas montado no Brasil e no Uruguai, um dos integrantes da organização criminosa preso já havia sido alvo de uma outra operação. Preso à época, obteve um habeas corpus e voltou a atuar no mercado de câmbio negro. O delegado Ricardo Saad, chefe da Divisão de Repressão Combate aos Crimes Financeiros da Polícia Federal em São Paulo, afirma que não é a primeira vez que isso ocorre. Segundo ele, de todos os doleiros presos em operações de combate ao câmbio ilegal e à evasão de divisas realizadas pela divisão das quais participou de 2002 até hoje, apenas dois estão presos. "Todos os outros conseguiram habeas corpus", diz.

Ao cenário "desolador" das prisões preventivas, do ponto de vista do acusador, soma-se uma outra estatística mais recente: quando o crime é econômico, o índice de sucesso do Ministério Público Federal é menor. No ano de 2008, 93% das 455 decisões do TRF da 3ª Região dadas em processos envolvendo estelionato foram favoráveis ao acusador. Mas, no caso das 93 decisões dadas pelo tribunal em ações penais por crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, o Ministério Público Federal obteve um índice de 81% de decisões favoráveis. A situação é semelhante no rol de decisões proferidas pelo TRF no primeiro semestre deste ano, quando o índice de sucesso do Ministério Público em ações por estelionato foi de 81%, contra 74% nos processos envolvendo apropriação indébita de INSS (veja quadro acima).

"Há uma tolerância da sociedade em relação a crimes econômicos", diz o procurador regional da República Marcelo Moscogliato, que coordenou o estudo em conjunto com a procuradora chefe da Procuradoria Regional da República da 3ª Região, Luiza Cristina Fonseca Frischeisen. Moscogliato cita como exemplo o caso da sonegação fiscal - crime cometido pelo empresário, mas estimulado pela não-exigência da nota fiscal, por exemplo. Além disso, segundo ele, a extinção da punibilidade no caso do pagamento do tributo sonegado é um mecanismo que leva ao uso do processo penal para a cobrança de dívidas. Já no caso do tráfico de drogas, há um consenso da sociedade em relação aos danos provocados pelo crime, "independentemente da condição financeira do réu", diz o procurador.

Uma das dificuldades apontadas por membros do Ministério Público para que as ações penais por crimes econômicos tenham eficácia - ou seja, gerem condenações - é o nível de exigência das provas. De acordo com o procurador Fernando de Almeida Martins, do Ministério Público Federal em Minas Gerais, na ação cível o indício de uma fraude é suficiente para levar à condenação na Justiça. Já no caso da ação penal, "o nível de prova exigido é absolutamente inviável", diz. Segundo ele, o sistema penal brasileiro tem diversas falhas que praticamente inviabilizam a punição do crime econômico. "Atuar na área penal é pedir para pagar um psicólogo, tamanha a frustração", diz o procurador, que há dez anos deixou a área penal e hoje atua na área de direitos do consumidor. "A prova indiciária (reunião de indícios que comprovem a prática de um crime) é muito difícil de ser aceita pela Justiça em matéria penal", afirma o procurador regional da República na 5ª Região Sady d'Assumpção Torres Filho.

Para o procurador da República no Rio de Janeiro, Antônio do Passo Cabral, que atua na área de crimes financeiros, criou-se ao longo do tempo o que ele chama de "fetiche da prova técnica" na esfera penal - e um dos exemplos disso é o boom de interceptações telefônicas dos últimos anos. Em um levantamento realizado nos tribunais brasileiros, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) identificou, em agosto deste ano, 7,5 mil linhas telefônicas interceptadas com autorização judicial, um volume 40% menor do que em outubro do ano passado, quando foram encontrados 12 mil grampos com autorização judicial. Já a CPI dos Grampos instalada no Congresso Nacional em dezembro de 2007 chegou a estimar a existência de 400 mil escutas no país. Segundo o procurador, a escuta acabou se tornando uma prova indispensável pela resistência dos juízes em condenar diante da probabilidade de existência de um crime a partir dos indícios. "Há um preconceito em se admitir a prova persuasiva, feita por indícios, ainda que o Supremo Tribunal Federal (STF) já tenha jurisprudência no sentido de que pode haver condenação criminal por indícios", diz.