Título: Evo, Rafael e Hugo: as urnas não são cor de rosa
Autor: Maluf , Rui Tavares
Fonte: Valor Econômico, 19/10/2009, Opinião, p. A12

Nos debates políticos sobre a base social dos governantes sul-americanos autointitulados socialistas, mas denominados nacional populistas por seus críticos, como Hugo Chávez (Venezuela), Rafael Caldera (Equador) e Evo Morales (Bolívia), seus defensores alegam que eles venceram as eleições com expressivos resultados, apresentando vantagens muito superiores à época que os adversários do campo opositor as venceram em eleições passadas.

Neste artigo me proponho a verificar o grau de veracidade de tais assertivas, uma vez que o tamanho da vitória eleitoral é invocado pelos governantes mencionados como justificativa para implementarem políticas públicas em temas fundamentais de suas sociedades, as quais geram conflitos significativos com as forças sociais associadas aos candidatos derrotados. Antes de apresentar os dados ressalvo que as realidades constitucionais e institucionais de cada um dos três países são diferentes. Assim, para afirmações mais conclusivas seria necessário levar em conta a existência do princípio de dois turnos adotado mais recentemente pela maioria dos países; a obrigatoriedade do voto; idade mínima para ser eleitor e candidato a presidente e os resultados das eleições parlamentares (nem sempre coincidentes no tempo com as do Executivo).

Feita a ressalva, passo a examinar a consistência dessas afirmações empregando um método simples e seguro, tendo por base o eleitorado inscrito, qual seja, a comparação do percentual de votos do primeiro colocado versus o percentual da marginalidade eleitoral (ME) no primeiro ou único turno - marginalidade sendo entendida como a somatória dos votos nulos, brancos e a abstenção eleitoral.

A comparação das duas variáveis por meio de uma simples divisão me permite obter a razão, ou seja, o quociente da divisão do percentual do primeiro colocado (numerador) pelo percentual da ME (denominador). Se formos otimistas o quociente será sempre bem superior a 1 (equivalente), pois é de se esperar do regime democrático que na grande maioria das vezes o primeiro colocado vença não apenas a seus adversários, mas também aos que não votam em ninguém ou deixam de comparecer às urnas.

Assim sendo, elaboro um ranking geral de 10 dos 12 países da América do Sul com a razão obtida nas eleições do atual período democrático dentre as que pude coletar dados com segurança. Foram deixadas de fora eleições das décadas de 60 e 70 na Colômbia e Venezuela, e na de 80 na Colômbia e Equador. Assim, levantei 42 eleições em primeiro turno em 29 anos (de 1980 a 2009), preferindo o primeiro porque nele há mais pleitos para análise e quase sempre há mais de uma candidatura disputando segmentos eleitorais semelhantes.

O resultado é muito claro. A marginalidade eleitoral venceu 23 eleições (54,8%) contra 19 (45,2%) do primeiro colocado, diferença expressiva de 9,6 pontos percentuais. Considerando primeiramente os atuais governantes dos três países que são o pretexto deste artigo, verifica-se o seguinte: Hugo Chávez disputou três vezes e só na mais recente (2006) teve resultado que o colocou entre os 10 primeiros, com 1,8 na 9 posição ao lado de Fernando Collor (1989). Nas duas anteriores (1998 e 2000), Chávez perdeu para a ME; o quociente ficou em 0,8 e 0,7 décimos respectivamente. O Equador de Rafael Correa escapou por pouco de ser derrotado para a marginalidade por se empregar aqui apenas uma casa decimal. Na eleição do corrente ano, o quociente ficou em 1. Ele obteve 34,1% dos votos e a marginalidade 34,5%. Evo Morales, da Bolívia, teve o melhor desempenho dos três ao ficar com 1,9 e obter a 8 ª posição, mas acompanhado de seu adversário no Continente, Alan Garcia, atual presidente do Peru (embora no primeiro mandato obtido em 1985), e de Julio Maria Sanguinetti, ex do Uruguai (no primeiro mandato, 1984). No topo da lista, em primeiríssimo lugar e bem à frente da segunda colocação está o ex-presidente do Chile, Patrício Aylwin (1989), com 6,6, que foi o primeiro chefe de estado eleito após a ditadura em seu país. Na segunda colocação está o também ex-presidente do Chile, e seu sucessor imediato, Eduardo Frei (3,6) acompanhado do presidente do Uruguai, Tabaré Vazquez (conquanto este último apareça no pleito de 1999, quando perdeu o segundo turno para Jorge Batlle).

Entendo que os governantes em questão venceram legitimamente as disputas para chegarem ao governo, mas estão distantes de uma situação confortável para deflagrar várias políticas embutindo altas doses de conflito, que exigiriam ampla maioria em suas sociedades ou, ao menos, um mínimo de consenso. Finalmente, o que penso que deveria preocupar a todos os que defendem o regime democrático é que a média ponderada geral das razões (considerando todos os países) vem caindo nitidamente na verificação de 30 anos, dividindo-os em dois subperíodos, a saber, de 1,6 (de 1980 a 1994) a 1,2 (de 1995 a 2009).

Rui Tavares Maluf é professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP), doutor em ciência política pela USP e mestre em ciência política pela Unicamp.

Para se ter uma "vitória expressiva" é preciso vencer o adversário e os votos brancos e nulos.