Título: Quilombo reage com indiferença à cassação
Autor: César Felício
Fonte: Valor Econômico, 28/09/2009, Especial, p. A16

Mãe de nove filhos - o mais novo com seis, o mais velho com 32, todos moradores da comunidade de Mumbuca. Floraci Batista de Matos nunca saiu do lugar onde nasceu. Só há pouco tempo soube que tinha direitos a receber por ser bisneta de "Pedrão", o líder de um grupo de escravos fugidos que se estabeleceu no local, no século passado. Até então, a história que a impressionava do antepassado era o fato de ter raptado uma adolescente índia que viria a ser a sua bisavó.

Desde o reconhecimento de Mumbuca como uma das dezesseis comunidades quilombolas de Tocantins, pelo governo federal, Floraci aguarda pela titulação das terras. Medida que tem tudo para demorar: o governo federal privilegia a posse coletiva das áreas quilombolas. Divididos em dois clãs, o dos Batista e o dos Ribeiro, os moradores de Mumbuca preferem a titulação individual e têm dificuldade em se organizar.

A confusão em Palmas, palco da destituição de um governador, na semana retrasada, e da provável eleição indireta de outro, esta semana, não poderia deixá-la mais indiferente. "Ouvi falar nisso. Para mim tanto faz", encerra. Sua única referência política é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. "É o único que deu uma chance para nós. Se a gente não aproveitar, a culpa é nossa", afirma.

A pobreza em Mumbuca e a incerteza fundiária não significam violência. O último crime no lugar, passional, aconteceu em 1997. Sem qualquer tradição agrícola, para os quilombolas a existência dos sulistas que sustentam o agronegócio no município é um conceito distante. "Eu nunca vi o pessoal da soja", afirmou a líder política da comunidade de Mumbuca, Aldina Batista dos Santos, vice-prefeita do município na gestão de "Martins" e prima de Floraci.

Hoje funcionária do pequeno centro do atendimento ao turista no núcleo urbano de Mateiros, Aldina vê na regularização quilombola uma perspectiva de continuar atuando politicamente. Evangélica da Assembleia de Deus, ex-tucana, diz que na política não gosta "dos esquerdos". Mas incorporou o discurso de militante social. "Nunca fomos respeitados. Chegou a nossa vez", afirmou.

É raro em Mumbuca que os homens se sobressaiam: como em outros grupos quilombolas, há características matriarcais. O artesanato do capim dourado, uma gramínea colhida no mato, única fonte de renda local, teve como principal impulsionadora Laurina Ribeiro da Silva, uma filha de "Pedrão". A filha, Guilhermina Ribeiro, ou dona Miúda, com 81 anos, é hoje a principal referência na atividade. A neta, Noemi, começa a ver o fim do ciclo. "Tem vindo muito malandro cortar o capim fora de hora para vender em Palmas. A gente só sabe quando vê o fogo no mato", disse. O quilo do capim dourado é vendido a R$ 40 na capital de Tocantins. Em Mumbuca, as peças de artesanato chegam a ser vendidas a R$ 300.

Ninguém fala quanto consegue tirar por mês. Mas dona Miúda mora em uma das duas únicas casas com banheiro. No centro do povoado, formada por casas de paredes de adobe, teto de palha e chão batido, as duas únicas construções de alvenaria é a escola estadual, instalada no governo Marcelo Miranda e o templo da Assembleia de Deus. A vocação turística do Jalapão aumentou a atenção pública para Mateiros, mas os efeitos do ecoturismo são ambivalentes.

No ano passado, o governo estadual interditou diversas áreas do município por vários meses para a gravação de um reality show americano, o "Survivor". A venda de artesanato desceu quase a zero. "Fiquei como camareira daquele povo louco, que não entendia nada que eu falava, e nem eu entendia nada deles", conta Neide Ribeiro, que largou a vida de empregada doméstica em Palmas para voltar a Mumbuca. "Achei melhor ficar por minha conta aqui, do que viver na casa dos outros lá", justifica. Neide garantiu sua renda no momento em que os turistas deixaram de chegar, mas é taxativa sobre a ofensiva de marketing feita pelo ex-governador tocantinense. "Foi horrível o que eles fizeram. Ainda bem que tudo isso acabou. (CF)