Título: Miséria sobrevive à soja e ao turismo do Jalapão
Autor: César Felício
Fonte: Valor Econômico, 28/09/2009, Especial, p. A16

O isolamento selou o destino de Mateiros, município tocantinense de 1,7 mil habitantes, encostado na Bahia, a 210 km de terra e areia do asfalto mais próximo. A precariedade da infraestrutura faz com que o polo produtor de soja e o ecoturismo do Jalapão - em que um pacote terrestre, em veículo com tração nas quatro rodas, não sai por menos de R$ 800 por pessoa - não se intercomunique com a economia local.

Em 2003, ao traçar o "Mapa da Pobreza e da Desigualdade", o IBGE colocou Mateiros como o terceiro município do país com maior índice populacional abaixo da linha da pobreza: nada menos que 81,6% de seus habitantes estão nessa condição. As duas cidades que a superam, Campos Lindos e Muricilândia, também pertencem a Tocantins. Uma das recordistas em miséria, Mateiros é uma síntese, com traços realçados, dos contrastes do interior tocantinense: convivem, não exatamente lado a lado, dadas as grandes distâncias, o extrativismo vegetal e o agronegócio, a cultura negra e o chimarrão, e pairando sobre ambos, a precariedade do poder público.

No imenso município, com 9 mil quilômetros quadrados, comunidades isoladas ainda lutam contra a incidência de hanseníase, como Boa Esperança ou Rapadura. Em Mumbuca, a 30 km do núcleo urbano, remanescentes quilombolas se organizam em torno do artesanato de capim dourado, uma fibra vegetal colhida nas várzeas com que se fazem adornos, caixas, porta-pratos e objetos de decoração. Sua existência mal é percebida em Panambi, a 120 km de terra do antigo quilombo, onde famílias sulistas exploram outro vegetal, a soja, com um faturamento que pode atingir R$ 3 mil por hectare.

Na comunidade sojicultora, comemora-se na próxima semana a festa de Nossa Senhora da Salete, com quermesse, show de dupla sertaneja e vaquejada. Na Mateiros pobre impera a Assembleia de Deus. O padre católico só aparece uma vez por semana e as pastorais há muito foram desativadas.

Muito longe de qualquer hospital, Mateiros não conta nem sequer com uma ambulância. A única existente foi destruída em um acidente na estrada, há quatro anos. Na comunidade quilombola, um único agente comunitário verifica a saúde dos 200 habitantes do núcleo. Na última pesagem feita por Edvan Ribeiro Gomes em sua casa de chão batido e telhado de palha, como todas as demais em Mumbuca, constataram-se três crianças em situação de risco de desnutrição, em um conjunto de 14. Já os cerca de 500 habitantes do Panambi contam com um posto de saúde.

Mateiros tornou-se um município em 1993, junto com uma leva de emancipações que fez o então recém-criado Estado do Tocantins saltar de 62 para 139 cidades em apenas quatro anos. A onda de novos municípios fez surgir uma safra de vereadores e prefeitos debutantes na política e com padrões precários de governança. Com apenas 16 anos de história, Mateiros já teve um prefeito afastado do cargo, Antonio Alves, o "Martins", eleito pelo PSDB em 2000.

Dono da fazenda onde está o "fervedouro", fonte de água que é uma das principais atrações turísticas do Jalapão, "Martins" perdeu o mandato por irregularidades nas contas da prefeitura. Em sua gestão, uma obra mal executada com dinheiro federal da Fundação Nacional da Saúde (Funasa) fez com que a comunidade de Mumbuca permanecesse sem ligações de água e esgoto. Das 35 casas na vila, apenas duas contam com banheiro. "Velhos e crianças com diarreia precisam se arrastar no mato", diz Edvan. "Martins foi condenado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) por nunca ter prestado contas do convênio da Funasa. Está sendo processado pelo Ministério Público Federal por não ter prestado contas também dos convênios de merenda escolar e transporte com o Ministério da Educação. Procurado na semana passada, "Martins" não foi localizado.

O atual prefeito, Josimar Ferreira, do PDT, desfilava pelas ruas da cidade na sexta-feira à bordo de um ônibus escolar doado pelo novo governador, Carlos Henrique Amorim, o "Gaguim". A entrega de ônibus escolares a vários municípios deu margem à primeira denúncia de ordem administrativa contra o novo governador. "Gaguim" é acusado pela oposição de ter feitos novos pagamentos pelos ônibus, já adquiridos no governo de Marcelo Miranda. A origem de Josimar mostra para onde pende o poder na pequena cidade: paranaense, é ex-gerente de um projeto de sojicultura, vizinho ao polo do Panambi.