Título: Questão da titularidade ainda causa polêmicas
Autor: Pinheiro, Márcia
Fonte: Valor Econômico, 29/10/2009, Especial, p. F4

Uma das incertezas que inibem os potenciais investimentos no setor de saneamento é a questão da titularidade dos serviços. Para disciplinar o assunto, foi aprovada a lei 11.445, em 2007, atribuindo competência legislativa e executiva aos entes da federação para que possam modernizar a infraestrutura dos serviços públicos e garantir uma adequada prestação de serviços, com eficiência, proporcionando universalidade, cobrando tarifas módicas. Entre os principais pontos da lei estão a questão da integralidade, ou seja, o conjunto de atividades e componentes de cada um dos serviços de saneamento, e a adoção de métodos, técnicas e processos que considerem as peculiaridades locais e regionais (ver quadro).

A titularidade continua sendo, no entanto, a principal questão entre as tantas complexidades que envolvem o uso, a manutenção e a arrecadação de recursos para o saneamento no Brasil. Há duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adins), uma impetrada pelo PDT e outra pelo PT, questionando justamente a transferência da titularidade dos municípios para o governo estadual, uma na Bahia e outra no Rio de Janeiro. Para Frederico Turolla, sócio da Pezco Pesquisa Y Consultoria, a lei 11.445/2007, que estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico, não deixa claro quem é o titular dos serviços do setor. A rigor, para ele, deveria ser o município.

Mas um exemplo que gera controvérsia é que vários sistemas extrapolam as cidades, não podendo ser, portanto, geridos apenas por elas. Um dos casos é o de Mairiporã (SP), onde a Sabesp, empresa de economia mista, com participação majoritária do governo de São Paulo, trata 60% da água, no chamado Sistema Cantareira. Esse sistema, com aproximadamente 227.950 hectares, abrange 12 municípios, sendo quatro no Estado de Minas Gerais (Camanducaia, Extrema, Itapeva e Sapucaí-Mirim) e oito em São Paulo (Bragança Paulista, Caieiras, Franco da Rocha, Joanópolis, Nazaré Paulista, Mairiporã, Piracaia e Vargem). É composto por cinco bacias hidrográficas e seis reservatórios interligados por túneis artificiais subterrâneos, canais e bombas, que produzem 33 metros cúbicos por segundo para o abastecimento da Região Metropolitana de São Paulo, o que corresponde a quase metade de toda a água consumida pelos habitantes da Grande São Paulo.

Outro aspecto polêmico é a questão da autonomia dos municípios em relação aos serviços de água e esgotos. A regulamentação da Lei de Saneamento, através de um decreto estabelecendo a Política Nacional de Saneamento Básico, está causando controvérsias. Por iniciativa do Ministério das Cidades, há um decreto em tramitação que pode ser "desastroso", na avaliação de Turolla. A lei 11.445 introduziu a regulação independente do saneamento, apesar de não ter sido formalmente criada uma agência reguladora para o setor. Segundo o consultor, o decreto, se aprovado, seria um retrocesso, pois facultaria a fiscalização a um colegiado político, ligado, por exemplo, aos prefeitos, inclusive no que diz respeito à fixação de tarifas. "O marco regulatório de 2007 introduziu alguma independência regulatória e, de certa forma, reduziu a incerteza para os investimentos", afirma Turolla. "Não há mais o que regulamentar, é só cumprir a lei", afirma o consultor.

Edson Depiere, da Projetos, Assessoria e Sistemas, explica que desde a Constituição de 1988 cabe aos municípios cuidar do sistema de saneamento. No entanto, poucos tomaram as providências necessárias nesse sentido. Ele considera que a lei de 2007 já foi um grande avanço, ao estimular ações como as do Programa de Aceleramento de Crescimento (PAC) e das Parceiras Público-Privadas (PPPs). Depiere cita outros benefícios da lei, como o fato do usuário não poder lançar mão de outros serviços concorrentes se dispuser de uma rede pública em frente a seu imóvel, ou a proibição de furar poços se na rua já está instalada uma rede de água. "Isso evita falcatruas e mau uso do dinheiro público", diz ele.

Tanto Turolla como Depieri queixam-se, porém, de que o processo de consulta pública do decreto em elaboração na Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades foi muito pouco participativo. Ambos estiveram em Brasília para obter mais detalhes e saíram praticamente de mãos abanando. Uma das saídas para o impasse, de acordo com os consultores, seria organizar mais convênios de cooperação entre municípios, Estados e União, para que as metas de universalização fossem cumpridas. No caso da participação de estatais ou empresas privadas, a forma mais adequada, e que já vem sendo utilizada, é o de licitações transparentes e competitivas.