Título: Cofre cheio
Autor: Bueno, Denise
Fonte: Valor Econômico, 29/10/2009, Especial, p. G1

Enquanto nos Estados Unidos os bancos privados são socorridos pelo governo e se tornam instituições públicas, no Brasil o caminho trilhado é literalmente o inverso. Os bancos oficiais avançam na concessão de crédito, invadindo áreas até então exclusivas de bancos comerciais. "2010 promete ser um grande ano para o crédito no Brasil e estamos prontos para manter nossa liderança e conquistar novos segmentos", diz Ricardo Flores, vice-presidente de crédito do Banco do Brasil.

Esse anseio do maior banco brasileiro implica mudanças significativas no cenário de crédito, por incomodar o que antes era tido como inabalável: a supremacia das instituições privadas na formação das taxas em segmentos nos quais ainda lideram, como financiamento de veículos e crédito para empresas.

Os dados divulgados pelo Banco Central (BC) esta semana mostram o avanço dos bancos oficiais, atendendo apelos do próprio governo. O estoque de empréstimos dos bancos públicos atingiu 40,6% do total de R$ 1,3 trilhão em setembro, colado na participação de 40,7% dos privados. A batalha do crédito está focada em áreas conservadoras, como consignado para pessoas físicas e garantia de recebíveis para empresas. Para melhorar o cenário, a inadimplência recuou pela primeira vez desde julho de 2008 e os spreads bancários continuam com viés de baixa.

O crédito tem sido uma das mais importantes ações anticíclicas adotadas pelo governo brasileiro. Nos EUA, por exemplo, a falta de financiamento agravou o quadro para o sistema financeiro, com mais de cem bancos americanos engolidos pela turbulência. Já no Brasil, o crédito está no topo da lista dos recursos acionados para que o país saísse logo da crise.

Ninguém mais discorda que boa parte desse resultado se deve ao desempenho dos bancos públicos, que amenizaram o impacto da recessão ao irrigar a economia. "Os bancos públicos brasileiros tiveram um papel muito importante na crise", afirma Erivelton Rodrigues, presidente da Austin Rating.

Graças à melhora da governança e da gestão, os bancos oficiais foram capazes de responder às necessidades do país. No início de outubro de 2008, ainda sem nenhum indício sobre a dimensão da crise, os bancos oficiais deixaram o pânico de lado e agiram.

Foram eles os responsáveis por boa parte da compra de carteiras de crédito de bancos que enfrentaram dificuldades com a falta de liquidez. "Embora com grandes indefinições, o banco tomou posicionamento de acreditar no Brasil e nas empresas", diz Flores.

O Banco do Brasil antecipou R$ 5 bilhões em crédito aos agricultores para não comprometer a safra. Em novembro, o BB destinou R$ 4 bilhões aos bancos de montadoras, mantendo o financiamento de veículos e desafogando os pátios, que ficaram lotados por causa da escassez do crédito e receio dos consumidores com o desemprego.

O BNDES ganhou reforço de R$ 5 bilhões para pré-embarque de exportações. A Caixa Econômica Federal disponibilizou linha de crédito de capital de giro de R$ 3 bilhões para empresas de construção civil.

A partir daí, todos os dias o governo divulgava uma nova medida. Foram mais de 40 só envolvendo os bancos oficiais desde outubro do ano passado, sem considerar as ações do governo, como autorização para compra de carteiras de bancos, redução do compulsório e isenção de tributos para a aquisição de bens, atuação no mercado de câmbio entre outras.

O market share dos bancos públicos passou de 32,2% em setembro de 2008 para 40,4% em junho deste ano. Enquanto isso, a participação dos bancos privados foi reduzida de 44,4% para 40,7% no mesmo período. Como resultado de tamanho esforço, a recompensa do BB veio com a reconquista da liderança do ranking de maior banco do Brasil em agosto, perdida com a fusão entre Itaú e Unibanco, em novembro de 2008. Retraído à espera de sinais mais claros da crise, os ativos do Itaú-Unibanco evoluíram apenas 15% no mesmo período, para R$ 596 bilhões.

Entre setembro de 2008 e junho, o BB conquistou dois pontos percentuais de market share, com a carteira de crédito passando de 16,4% para 18,7%. É um crescimento forte, impulsionado pelo segmento de pessoa física e empresas, particularmente em micro e pequenas empresas. Consolidou-se na liderança em câmbio exportação, com 32,3% do mercado em junho, em câmbio importação, com 23,8%, em crédito consignado, com 32,6% e em agronegócios, nicho no qual detém 62,7% do mercado.

É certo que os bancos estatais são beneficiados pela captação de recursos a um custo menor, observa o economista da Federação dos Bancos (Febraban), Rubens Sanderberg, ex-funcionário da Nossa Caixa. Além disso, foram beneficiados na crise ao se tornar um refúgio seguro para depositantes, além de deter os depósitos judiciais e a maior parte das folhas de pagamento da União.

"Fomos percebidos como um banco parceiro e vamos aproveitar este momento para crescer ainda mais", diz o vice-presidente do BB.

À medida em que a crise se tornou mais clara, o banco saiu da postura de "ambulância" para aproveitar as oportunidades. Comprou 50% do Votorantim, que lhe abriu as portas do financiamento de veículos. E concretizou a compra da Nossa Caixa, com R$ 17 bilhões em ativos.

No alvo do banco estão micro e pequenas empresas, crédito imobiliário e de veículos. Em 2010, o BB trabalha com cenário em que a competição vai aumentar de verdade. E São Paulo será um dos grandes alvos. "Passamos da quarta posição em pontos de atendimento em São Paulo para a primeira. Isso nos dá mais musculatura para crescer no maior mercado de crédito do país."

O BNDES trilhou o mesmo caminho. Além do papel anticíclico, o banco de fomento comemora o resultado obtido. Os desembolsos do BNDES atingiram R$ 100 bilhões de janeiro à segunda semana de outubro, recorde na história do banco, segundo informou o presidente Luciano Coutinho. Com a Copa em 2014 e Olimpíada em 2016, o papel do banco se torna ainda mais visível. Por se caracterizarem como projetos de longa maturação e elevado risco, a instituição é, naturalmente, a principal fonte de financiamento de longo prazo para sua viabilização.

Não demorou muito para os bancos privados reagirem, principalmente tendo como pano de fundo a redução da taxa básica de juros da economia para um dígito, em junho. Com a Selic num patamar nunca registrado, as instituições privadas, preocupadas em manter a rentabilidade, voltaram a emprestar com apetite moderado a partir de agosto. "Quem quiser crescer, terá de emprestar", reforça o presidente da Austin Rating.

Em setembro, os maiores bancos privados anunciaram redução nas taxas de juros e incrementaram a oferta de recursos aos clientes corporativos e individuais. Os bancos médios também se animaram com a expressiva demanda dos investidores por papéis de empresas brasileiras e começaram a operar com mais vigor, estimulando o sistema financeiro a proporcionar um crescimento mais equilibrado ao país.

O otimismo é tamanho que o Banco Mundial emitiu relatório projetando o Brasil como chegando a quinta maior economia do mundo em 2016. Para isso, será necessário muito trabalho. Em setembro, o saldo da carteira de crédito avançou 1,5% no mês e 16,9% em doze meses. Como resultado, a participação do crédito no Produto Interno Bruto (PIB) subiu para 45,7%, ante 45,3% em agosto e 38,7% em setembro de 2008.

Ainda que acima de outros países latino-americanos com grau de desenvolvimento semelhante - como México (20%), Argentina (12,5%) e Colômbia (36%) -, esse indicador é bem inferior ao observado nas economias desenvolvidas e em desenvolvimento do leste da Ásia - Coreia do Sul (101%), Malásia (100%) e Tailândia (82,7%), como mostra estudo do BNDES.

"O aspecto mais positivo das estatísticas do crédito acumuladas até setembro é a queda da inadimplência do sistema financeiro brasileiro pela primeira vez no ano e a manutenção das provisões", comentam os analistas da Link Corretora.

Segundo dados do BC, a taxa média de juros das modalidades que compõem o crédito referencial vêm recuando e atingiu 35,3% ao ano em setembro, o menor patamar desde dezembro de 2007. Uma queda de cinco pontos percentuais nos últimos doze meses. O spread bancário também segue a mesma trilha, situando-se em 26%, o menor nível desde julho de 2008.