Título: As confusões do IBGE e o setor sucroalcooleiro ::
Autor: Feltran-Barbieri , Rafael
Fonte: Valor Econômico, 30/10/2009, Opinião, p. A14

Censo Agropecuário põe mais lenha no debate sobre a expansão agrícola para a produção de biocombustíveis

No controverso debate sobre a expansão agrícola para produção de biocombustíveis, o Brasil tem ocupado posição de liderança, como único país capaz de duplicar a oferta de etanol, que já é a segunda maior do mundo, sem ter que travar competição interna com gêneros alimentícios ou suprimir ecossistemas sensíveis. O trunfo estaria na extraordinária abundância de terras. É nesse argumento que se fiou até agora o setor sucroalcooleiro ao se apoiar nos dados do IBGE para sustentar a existência descomunal de 180 milhões de hectares de pastos, com pelo menos um quarto deles degradados, aos quais a cana-de-açúcar daria destinação útil e desejável.

Com a publicação do Censo Agropecuário 2006, uma análise descuidada poderia por em xeque o argumento. Pela primeira vez na história os dados censitários discriminam entre as pastagens brasileiras aquelas consideradas degradadas. E a taxa inaugural é surpreendentemente baixa, isto é, 6% ou 10 milhões de hectares, área quatro vezes menor do que a propalada pelo setor.

Mas esses dados do novo censo não são confiáveis. Tecnicamente, "pastagem degradada" é aquela incapaz de produzir biomassa suficiente para suportar o pastoreio e promover o ganho adequado de peso animal, configurando uma área cuja produtividade está aquém de seu potencial, podendo, no limite, ser considerada improdutiva. Ora, como a estimativa do censo é construída a partir de questionários aplicados aos próprios pecuaristas, é de se esperar que os entrevistados subestimem suas áreas degradadas, caso contrário estariam depondo contra si mesmos, alardeando a improdutividade das propriedades. É plausível deduzir, portanto, que haja muito mais pastagens degradadas do que aponta o instituto.

Mais grave, porém, do que a novidade presumivelmente falha, é o velho equívoco do censo em manter os critérios de 1950 para enquadrar o Cerrado como "pastagem nativa", atribuindo-lhe previamente uma vocação pecuária em detrimento da relevância de sua biodiversidade. Dito de outra forma, nesse antigo mas persistente sistema de classificação, as mais de 3 mil espécies nativas de plantas rasteiras que compõem os campos naturais do Brasil Central são sumariamente ignoradas, discriminando-as da monocultura de gramínea exótica que caracteriza a pastagem plantada apenas pelo adjetivo "nativas", como se fosse um mero detalhe.

Nesse critério, as conversões das "pastagens nativas" em "pastagens plantadas" levam o usuário a crer que houve apenas uma substituição de forrageiras, enquanto ofuscam a verdadeira mudança na modelagem do mosaico rural advinda de desmatamentos tão impactantes para as espécies endêmicas quanto a transformação da Amazônia em pastos.

O que o Censo Agropecuário permite analisar, afinal, é que, primeiro, na geografia do Brasil real deve haver muito menos pastagens, se 1/3 delas, ou quase 57 milhões de hectares são Cerrados, bioma que mais sofreu derrubadas na década transcorrida pela lacuna censitária entre 1996 e 2006. Em segundo lugar, entre os 2/3 restantes conformados pelas pastagens plantadas, a quantidade de "áreas degradadas" deve ser muito maior do que admitem os criadores de gado, ou a pecuária brasileira não seria tão extensiva.

Nesse novo panorama, no que mudaria as perspectivas do setor sucroalcooleiro? Provavelmente em nada, e não pelo fato de que, certo ou não, o número de pastos improdutivos revelados pelo IBGE é de qualquer modo suficiente para duplicar os canaviais no Brasil. Diferente disso, nada muda porque, na prática, a expansão canavieira está ocorrendo sobretudo em áreas de lavoura de grãos, citros, café e horticultura, como têm mostrado crescentes estudos baseados em imagens de satélite.

Pesquisa liderada por André Nassar, importante cientista no tema, mostra a preferência por terras agrícolas em Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. São terras que figuram como tradicionais redutos da pecuária, mas onde são os plantios de soja os mais substituídos pelos canaviais.

É preciso salientar ainda que nem mesmo o Zoneamento da Cana deverá ser capaz de reverter esse quadro. Ao contrário do que pensa a maioria dos leigos e mesmo dos especialistas, o Zoneamento, como de qualquer outra cultura, não tem o poder legal de disciplinar e restringir a ocupação canavieira às pastagens, senão o de mapear as macrozonas recomendadas para os plantios, com o direito garantido de reclamarem seguros agrícolas em eventuais sinistros. Uma vez inseridos na área mapeada - vale dizer a Região dos Cerrados, se a Amazônia e Pantanal foram salvos - a escolha das áreas a serem efetivamente convertidas obedecerá aos critérios que cabem exclusivamente às estratégias das usinas.

Como não há no agronegócio brasileiro setor que reúna tantos eminentes pesquisadores e grupos empresariais tão competentes quanto o sucroalcooleiro, não se deve estimar que o conhecimento científico aliado ao tino comercial conduza a decisões que justifiquem a preferência às terras marginais e degradadas apenas por serem abundantes, ou, pelo contrário, abra mão dos melhores solos porque escassos, e originalmente produtores de alimentos.

Assim, o argumento da abundância de pastagens - degradadas, nativas e plantadas -, a despeito dos critérios confusos do IBGE, persistirá convenientemente adequado para garantir o discurso brasileiro no controverso debate sobre os biocombustíveis, enquanto as áreas já arroteadas para a agricultura permanecerão como as efetivamente substituídas pela cana, por apresentarem, sem dúvida alguma, as melhores expectativas de rendimento concentradas nas regiões servidas por infraestrutura privilegiada ou próximas aos grandes centros consumidores.

Rafael Feltran-Barbieri é doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da USP, e pesquisador do Núcleo de Economia Socioambiental (NESA) e Núcleo de Estudos em Contabilidade e Meio Ambiente (NECMA), ambos da FEA - USP.