Título: Províncias argentinas voltam a se endividar
Autor: Rittner , Daniel
Fonte: Valor Econômico, 10/11/2009, Internacional, p. A13

No momento em que a Argentina busca reabrir as portas do mercado de crédito internacional, negociando com os credores remanescentes da moratória de 2002, suas Províncias voltaram a se endividar perigosamente e enfrentam um cenário de forte deterioração das contas públicas. Greves no funcionalismo, aumentos de impostos e atraso nos pagamentos a fornecedores compõem o quadro de fragilidade fiscal. Pela primeira vez em sete anos as Províncias terão déficit primário, que chegará a 4,7 bilhões de pesos (cerca de US$ 1,2 bilhão) em 2009.

Nada indica uma reversão da trajetória negativa. Mesmo com a retomada do crescimento econômico e a expectativa de maior arrecadação, o déficit deve agravar-se ainda mais no ano que vem e alcançar 6,8 bilhões de pesos (quase US$ 1,8 bilhão), segundo estimativas de consultorias. Para Rogelio Frigerio, diretor da Economía & Regiones, é grande a possibilidade de que o governo federal se veja obrigado a socorrer as Províncias. Ele diz que pode ser necessário repactuar a distribuição de impostos federais ou renegociar as dívidas provinciais, já que a União é credora de 75% do volume total.

Com a liberdade obtida pelas mudanças recentes na Lei de Responsabilidade Fiscal, seis Províncias e a cidade autônoma de Buenos Aires (que tem status de Província) já anunciaram a intenção de emitir novos títulos públicos para bancar despesas correntes. O caso mais dramático é o da Província de Buenos Aires, que enfrentará amanhã uma greve de professores nas escolas públicas, em busca de reajuste salarial. A Província pretende endividar-se em US$ 1,1 bilhão para fechar as contas. Uma parte será destinada ao pagamento de fornecedores e construtoras responsáveis por obras públicas.

De acordo com a União Argentina dos Provedores do Estado (Uape), a Província de Buenos Aires articula o pagamento de 20% dos contratos com pequenas e médias empresas e de até 80% dos contratos com grandes empresas por meio de títulos públicos, em caráter optativo. Já a cidade de Buenos Aires propõe pagar até 90% dessa forma, mas de forma compulsória.

"Contratar um fornecimento ou um serviço e depois quitá-lo com meios de legitimidade duvidosa é um engano que cedo ou tarde será pago com desprestígio, falta de crédito, falências e o nosso empobrecimento como nação", diz Jorge Benedetti, presidente da Uape.

A boa notícia para as Províncias e para o país, segundo Rogelio Frigerio, é que o retorno de moedas paralelas à Argentina está praticamente descartado no curto prazo. Em meio à crise de 2001, que culminou na desvalorização do peso e na moratória da dívida, títulos públicos como o "patacón" chegaram a ser usados como moeda corrente. "Agora existem duas diferenças importantes: a União tem superávit fiscal e é ela a principal credora das Províncias - e não mais bancos, como naquela ocasião."

A má notícia, pondera Frigerio, é que "a situação fiscal das províncias tem cada vez mais a ver com questões estruturais do que com aspectos conjunturais". A folha salarial dos servidores compromete 53% da arrecadação, em média. Se contabilizadas as empresas estatais, como bancos, a fatia sobe para 75%.

Por isso, o cenário é desalentador mesmo quando se leva em conta que a recessão pode ter ficado para trás. No sistema tributário desenhado pelos presidentes Néstor e Cristina Kirchner, as Províncias recebem da União apenas 15% do imposto sobre o cheque e transações bancárias e foram excluídas da arrecadação proveniente do imposto sobre as exportações agrícolas. "É basicamente isso que explica o superávit primário nacional", afirma Frigerio. Para minimizar a pressão dos governadores, o governo federal aceitou transferir às Províncias 30% do dinheiro arrecadado unicamente com as retenções sobre exportações de soja. Mesmo assim, os recursos devem ser investidos em obras.

Um dos efeitos mais visíveis da deterioração fiscal está na sequência de paralisações do funcionalismo. As últimas semanas tiveram greves de professores, médicos e outros servidores em Províncias como Chaco, Tucumán e Córdoba. Levantamento da consultoria Ecolatina, do ex-ministro Roberto Lavagna, indica que, só no terceiro trimestre, cruzaram os braços 3,1 milhões de trabalhadores no país - 60% dos quais servidores públicos.

Na tentativa de atender as reivindicações salariais sem deixar o caixa ainda mais vermelho, os governos provinciais apostam em aumentos de impostos. A Província de Buenos Aires elevou os impostos imobiliários e criou novos tributos sobre a negociação de carros usados, a operação de cargas e descargas portuárias e a obtenção de heranças. O governador eleito de Corrientes, que toma posse em dezembro, deixou em dúvida o pagamento de décimo-terceiro salário a servidores provinciais.

Esse quadro levou o Congresso a aprovar, no mês passado, a suspensão de três pontos fundamentais da Lei de Responsabilidade Fiscal para os anos de 2009 e de 2010. As mudanças permitem que as províncias executem seus orçamentos financeiros com déficit, aumentem o gasto primário acima da taxa de crescimento do PIB nacional e emitam dívida para bancar suas despesas correntes. Rogelio Frigerio aponta a contradição na iniciativa: em vez de adequar as contas públicas às leis de disciplina fiscal, a Argentina muda suas leis para acomodar o déficit. Para ele, as províncias terão apenas um "bote salva-vidas". "Quem no mercado financeiro estará disposto a financiar os gastos correntes das províncias, a taxas minimamente razoáveis, depois de tudo o que ocorreu em 2001?"